
Acompanhe toda a atualidade informativa em 24noticias.sapo.pt
INTRODUÇÃO
Em 1979, quase um ano depois de o polaco Karol Wojtyla ter subido à Cátedra de São Pedro como João Paulo II, um romance intitulado The Vicar of Christ [O Vigário de Cristo] ocupou durante treze semanas consecutivas a lista de livros mais vendidos do jornal The New York Times. Nessa obra, o autor, Walter F. Murphy, especialista em jurisprudência da Universidade de Princeton, retratava um candidato papal pouco «papável» chamado Declan Walsh, herói da Guerra da Coreia e juiz do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, que, após a morte prematura da sua mulher, decide deixar tudo para iniciar uma vida dedicada ao sacerdócio. Um dia, recebe um telefonema desesperado do Vaticano, após um Conclave frustrado, e é eleito Sumo Pontífice. Walsh adota o nome de Francisco e começa a usar a Cátedra de São Pedro como plataforma para lançar uma cruzada global contra a fome, composta por jovens católicos e financiada mediante a venda de importantes tesouros do Estado do Vaticano. O Francisco fictício intervém repetidamente em conflitos mundiais, chegando mesmo a voar até Telavive para travar uma campanha de bombardeamento de vários países árabes contra o Estado de Israel. Também planeia revogar paulatinamente a doutrina da Igreja sobre a contraceção e o celibato clerical, e transfere todos os cardeais conservadores para a vida monástica quando estes conspiram contra ele. O Papa do romance aproxima-se perigosamente da heresia ariana, que punha em causa a plena divindade de Jesus, e abraça o pacifismo religioso ao estilo dos quacres, argumentando que a teoria da «guerra justa» se tornou obsoleta numa era de armas nucleares e de guerra total. Este último movimento faz com que um governo decida assassiná-lo, ao vê-lo como um obstáculo significativo aos seus interesses bélicos. A ideia-chave do livro de Murphy de um «Papa Francisco» progressista decidido a propor uma transformação radical do catolicismo perdurou no imaginário popular.
Num outro romance, White Smoke [Fumo Branco], do padre e romancista Andrew M. Greeley, o Conclave termina com a eleição de um cardeal espanhol liberal, Luis Menéndez, cujos opositores conservadores são derrotados por cardeais americanos que apoiam o compromisso do novo Papa com a modernização da Igreja.
Digno de nota é também o Papa Cirilo I do romance de Morris West As Sandálias do Pescador. Enquanto decorre o Conclave para a eleição do novo Pontífice, o mundo está à beira de uma guerra nuclear devido a um conflito entre a União Soviética e a China motivado por um embargo comercial dos Estados Unidos ao país asiático. O embargo condena à fome a população chinesa. O presidente Peng ameaça atacar os Estados Unidos, os seus aliados e a União Soviética, que acusa de conluio com Washington. No dia da coroação, o Papa Cirilo I, perante a multidão reunida na Praça de São Pedro, retira a tiara papal em sinal de humildade e anuncia ao mundo que se vai desfazer de todos os bens materiais da Igreja para dar de comer ao povo chinês, uma decisão aclamada em todo o mundo.
Esses três Papas fictícios, Francisco, Luis Menéndez e Cirilo I, alentaram as esperanças de que um dia a Cátedra de São Pedro poderia vir a ser ocupada por um Pontífice moderado e menos ortodoxo, numa época de conservadorismo e afastamento dos preceitos do Concílio Vaticano II por Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI. O que muitos católicos — e não católicos — não sabiam é que esse dia chegaria de facto, num dia de chuva em março de 2013.
A possibilidade da nomeação de um Papa «revolucionário» não era algo que a maioria dos observadores do Vaticano levasse muito a sério. Nem eu, já que parecia pouco provável que os membros de um Colégio Cardinalício nomeados pelos conservadores João Paulo II e Bento XVI elevassem um verdadeiro liberal à Cátedra de São Pedro. No entanto, essa ínfima probabilidade concretizou-se em 2013 e com a nomeação de Francisco, tendo-se cumprido muitos dos elementos imaginados por Murphy, West e Greeley. Pelo menos é o que parece. Desde 2013 têm-se verificado notórias ruturas do protocolo papal, ingerências na política global, a reabertura de importantes debates sobre questões morais, bem como um misto de humildade pública e exploração hábil da mensagem, juntamente com a destituição dos seus opositores, sem a menor hesitação por parte do Pontífice.
Em outubro de 2012, por ocasião do lançamento do meu livro Os Abutres do Vaticano, e em pleno furacão mediático por causa da polémica revelação dos documentos secretos que esteve na origem do «caso Vatileaks», vários meios de comunicação social de diferentes países consideraram-me «clarividente» por ter previsto — com quatro meses de antecedência — a renúncia do Papa Bento XVI. Já nessa altura expliquei que não sou feiticeiro, não vejo o futuro, nem sou adivinho; simplesmente interpretei uma série de acontecimentos como sinais que me permitiram chegar a uma conclusão.
Em 13 de março de 2015, quase dois anos depois de ter sido nomeado Papa, Francisco alegou que o seu pontificado seria breve, acrescentando que «era da opinião de Bento XVI», que apresentou a renúncia à Cátedra a 28 de fevereiro de 2013, decorridos oito anos no cargo. Em declarações ao canal de televisão mexicano Televisa, por ocasião do segundo aniversário do seu pontificado, Francisco afirmou: «Tenho a sensação de que o meu pontificado vai ser curto. Quatro ou cinco anos. Ou dois ou três, não sei. Bem, dois já passaram. É uma sensação vaga. Não sei o que é. Mas tenho a sensação de que o Senhor me pôs aqui por pouco tempo, e nada mais.» Sobre a renúncia de Bento XVI, Francisco disse na mesma entrevista que «ele abriu uma porta e não devemos considerar esse facto como uma exceção, mas antes como uma instituição». O primeiro Papa jesuíta e latino-americano da História voltava a fazer pairar o fantasma da renúncia pela segunda vez em dois anos. Diz-se que, no início do seu papado, Bento XVI, no mais puro «humor alemão», comentou com o seu então Secretário de Estado, o cardeal Angelo Sodano, e com o seu secretário particular, Georg Gänswein, «Bem, em 1978 tivemos três Papas», referindo-se a Paulo VI, João Paulo I e João Paulo II.
A verdade é que seria difícil escolher uma única frase ou gesto que, por si só, definisse o Papa Francisco, que afirmou ter vindo do «fim do mundo» quando apareceu pela primeira vez na varanda da Basílica de São Pedro, após a sua eleição no Conclave de março de 2013. Talvez a singela cruz de prata que levava, os sapatos gastos e aquele simples «Boa tarde» dirigido a todos os fiéis aglomerados em redor da colunata de Bernini e aos milhões que assistiam por televisão nos quatro cantos do mundo. «Quem me dera uma Igreja pobre e para os pobres!» e «Quem sou eu para julgar os gays?» foram algumas das frases do novo Papa que causaram um certo incómodo entre os sectores mais ortodoxos da Cúria. Francisco falava numa linguagem simples, sem se preocupar com o politicamente correto, e fez o que fez apesar de as suas três grandes decisões à porta fechada — reformar a Cúria, sanear as finanças do Vaticano e combater a pederastia — lhe terem valido a inimizade de sectores importantes dentro dos muros do Vaticano.
Bergoglio estava decidido a fazer uma limpeza na Igreja, a pôr termo à pesada burocracia do Vaticano, a desmantelar os «reinos de Taifas» e a afastar todos aqueles que quisessem conservar os seus privilégios. Começou por enterrar a «ameaça do fogo eterno» e substituí-la pela «esperança do perdão». Depois, recordou na presença dos seus cardeais que «Cristo expulsou os fariseus do templo, acariciou o leproso e fez-se amigo de Maria Madalena, sem se importar com o que os outros diriam». A mensagem dirigia-se a um sector da Cúria que continuava a defender os privilégios eternos. Também tentou, mas em vão, pôr fim à corrupção económica no seio da Santa Sé.
Uma semana depois de ser eleito, Francisco visitou Bento XVI, que lhe entregou em mão um «relatório secreto» de 73 páginas que explicava em pormenor as guerras de fações dentro da Cúria que tinham posto termo ao seu pontificado. O novo Papa nunca revelou o conteúdo desse relatório, mas, em algumas ocasiões, deu a entender que «não só sabia quem são os lobos que atacaram Bento, como estava disposto a combatê-los até ao fim». Porém, verdade seja dita, não conseguiu fazê-lo ao longo dos anos em que esteve à frente da Santa Sé.
Os rumores sobre uma possível renúncia acompanharam Francisco desde que foi eleito. Em 2021, depois de ter sido operado ao cólon, esses rumores tornaram-se incessantes e ressurgiram no início de maio de 2022, quando teve de assistir ao funeral do todo-poderoso cardeal Angelo Sodano, Secretário de Estado do Vaticano de 1991 a 2006, numa cadeira de rodas. Em dezembro de 2023 voltou-se a falar sobre a sua morte, até sobre o seu funeral.
Em 2022, aos 85 anos, o Papa atravessou um período delicado. As fortes dores no joelho direito impediam-no de caminhar e, quando não estava numa cadeira de rodas, tinha de andar com a ajuda de uma bengala. «Ele está muito bem a nível mental, muito lúcido e com vontade de levar a cabo a missão que tem pela frente. Mas é óbvio que, para ele, estar nesta situação é um grande obstáculo», explicou o Secretário de Estado Pietro Parolin, número 2 do Vaticano e amigo íntimo do Papa argentino.
Em maio de 2022, nos corredores da Santa Sé todos davam como certo que, após mais de nove anos, o pontificado de Francisco estava na reta final. O anúncio de que o Colégio Cardinalício seria novamente ampliado suscitou um grande interesse. Em 27 de agosto desse ano, o Papa nomeou 20 novos cardeais, 16 eleitores e 4 não eleitores, aumentando o número de membros do Colégio para 226, dos quais 132 tinham menos de 80 anos, estando, por conseguinte, qualificados para eleger o 267.o Papa da Igreja.
Francisco não tinha dúvidas de que queria um Colégio Cardinalício à sua imagem e semelhança. Apesar de não poder participar no próximo Conclave, estava decidido a deixar o maior número possível de cardeais eleitores que dessem continuidade à sua linha, tais como o arcebispo britânico Arthur Roche, que substituiu o conservador Robert Sarah na chefia da Congregação para o Culto Divino; o bispo sul-coreano Lazzaro You Heung, nomeado prefeito da Congregação para o Clero em 2021, ou o espanhol Fernando Vérgez Alzaga, homem da máxima confiança de Francisco e que governa a Cidade do Vaticano. Este último é o primeiro cardeal procedente da organização Legionários de Cristo, com cuja nomeação o Papa legitimou a renovação daquela congregação religiosa após o escândalo dos abusos sexuais de menores por parte do seu fundador, Marcial Maciel.
Os nomes escolhidos por Francisco comprovavam o seu desejo de que o Conclave seguinte refletisse «a diversidade de uma Igreja periférica que floresceu na Ásia e em África». Ao longo dos anos, Bergoglio nomeou clérigos dos quatros cantos do mundo, como o arcebispo de Díli (Timor-Leste), o arcebispo de Goa e Damão (Índia-Bharat), o bispo de Wa (Gana), o arcebispo de Singapura e o prefeito apostólico em Ulaanbaatar (Mongólia), Giorgio Marengo, um missionário italiano que, com apenas 48 anos, se tornou o membro mais jovem do Colégio Cardinalício.
«A próxima assembleia [conclave] na Capela Sistina não irá obedecer às lógicas tradicionais de poder concebidas durante séculos pelos italianos», confessou recentemente um analista do Vaticano. «Quando um Papa convoca um Consistório, está sempre a pensar no Conclave seguinte, porque a primeira obrigação do Colégio Cardinalício é a escolha do Pontífice, e há que contar sempre com a possibilidade de o Papa renunciar, morrer ou ser assassinado», observou Austen Ivereigh, autor da célebre biografia Francisco, O Grande Reformador: Os Caminhos de Um Papa Radical e ex-conselheiro do cardeal britânico Cormac Murphy-O’Connor, um dos apoiantes fundamentais de Francisco no Conclave de 2005. «A vontade do Pontífice é clara. [Francisco] quer um Colégio Cardinalício onde possa ter lugar um verdadeiro discernimento acerca das questões que preocupam os países pobres e não uma batalha entre fações ideológicas, algo característico da Igreja nos países ocidentais», destacou Ivereig. O Consistório anunciado por Francisco para agosto de 2022 — o oitavo do seu pontificado — manteve o cariz dos sete anteriores; o Papa jesuíta indigitou os príncipes da Igreja em função das questões que mais o preocupam: a consideração pelas minorias, a necessidade de reforçar o diálogo inter-religioso, a perseguição dos cristãos e a proximidade em relação aos pobres — «pastores com cheiro a ovelha», como o próprio Francisco os definiu. É algo que já fez ao dar prioridade, nas suas deslocações, a países como a República Democrática do Congo ou o Sudão do Sul, adiando outras a França ou Espanha, destinos tradicionalmente prioritários para Papas anteriores.
Em 27 de agosto de 2022, com 132 cardeais com menos de 80 anos, o Papa Francisco ultrapassou o limite tradicional de 120 cardeais eleito- res, o que indicava que haveria que esperar pelo próximo Consistório, provavelmente até ao segundo trimestre de 2023, quando o italiano Angelo Comastri fizesse 80 anos, para o número de eleitores diminuir. Destes, 83 — ou seja, a grande maioria — foram nomeados por Fran- cisco, 38 receberam o barrete cardinalício das mãos de Bento XVI e apenas 11 das de João Paulo II. Se o Vaticano fosse uma democracia tradicional, o «partido» do Papa Bergoglio teria a maioria absoluta — 62% dos votos —, pelo que o mais provável seria que o seu sucessor também fosse um reformista. Mas na monarquia absoluta do Vaticano, as coisas não funcionam bem assim. Os Conclaves costumam trazer surpresas, enormes surpresas... Foi o caso dos Conclaves que elegeram João XXIII, João Paulo I e, sobretudo, Francisco, um outsider que não se encontrava no círculo dos «papáveis», em comparação com outros nomes com mais possibilidades, como o cardeal italiano Angelo Scola, o canadiano Marc Ouellet, o brasileiro Odilo Pedro Scherer ou o americano Sean O’Malley. Se Ratzinger foi promovido por um grupo na Cúria, Bergoglio consagrou-se como o favorito dos cardeais que queriam uma mudança radical após os escândalos desencadeados pelo «caso Vatileaks».
Ainda assim, os «escolhidos» de Francisco estavam longe de ser um grupo homogéneo, se bem que a palavra «homogéneo» pouco tenha a ver com a realidade do Vaticano. Muitos dos novos cardeais nem sequer se conheciam entre si, portanto dificilmente se chegaria a constituir um «grupo bergogliano» antes do Conclave, como temia a oposição conservadora, composta maioritariamente por cardeais italianos.
Depois do Consistório de agosto de 2022, Francisco convocou uma reunião de dois dias com todo o Colégio Cardinalício (eleitores e não eleitores) para estudar a nova Constituição Apostólica que reformaria definitivamente a tão propalada e imprescindível reorganização da Cúria.
«A lista final de cardeais é complexa, por isso é difícil fazer apostas quanto a “papáveis”, embora eu espere que o próximo Papa reflita substancialmente a visão de Francisco. Não será uma fotocópia, mas eu estranharia que fosse alguém completamente diferente», observava o jornalista Gerard O’Connell, autor de The Election of Pope Francis [A Eleição do Papa Francisco], um relato pormenorizado do Conclave de 2013.
No dia seguinte ao Consistório em que o Papa nomeou 20 novos cardeais — 16 dos quais eleitores — Francisco deslocou-se a L’Aquila, a cidade dos Abruzos devastada por um terramoto em 2009, para a celebração da chamada festa do Perdão Celestiniano. Visitou também a Basílica de Santa Maria di Collemaggio, onde se encontra o túmulo de Celestino V, o Papa eremita que, em 1294, renunciou à Cátedra de Pedro passados apenas cinco meses de papado. Curiosamente, Bento XVI também visitou esse túmulo em 2009, deixando para trás o seu pálio, um gesto simbólico que alguns comentadores e vaticanistas consideraram premonitório da sua própria renúncia, que teve lugar exatamente quatro anos mais tarde, em 2013. As visitas de Bento XVI, a 28 de abril de 2009, e de Francisco, a 28 de agosto de 2022, fizeram com que os analistas vaticanos começassem a falar da «Síndrome Celestino».
«É muito esquisito um Consistório em agosto, ele não tem nenhuma necessidade de o convocar com três meses de antecedência e depois ir a L’Aquila entre uma coisa e outra», assegurou Robert Mickens, editor da edição inglesa do diário católico La Croix. Uma semana depois do Consistório de agosto de 2022, o Pontífice reuniu-se com os cardeais para os informar acerca da reforma da administração central do Vaticano que ele contemplava, visando limitar os mandatos dos chefes dos gabinetes da Santa Sé, em especial Dicastérios, Conselhos, Comissões e outros departamentos da Cúria, e permitir que esses cargos sejam ocupados por mulheres. O certo é que, dentro e fora do Vaticano, só havia lugar para conjeturas. «É demasiado cedo. O Papa não irá renunciar enquanto Bento XVI for vivo. Se um emérito já nos dá tantos problemas, imaginem dois», assinalava uma fonte do Vaticano ao jornal La Repubblica.
Ross Douthat, no artigo «Will Pope Francis Break the Church?» [«Irá o Papa Francisco dar cabo da Igreja?»] para a revista The Atlantic, afirmou que a Igreja ainda estava longe de viver uma revolução:
Os limites teológicos e práticos do poder papal mantêm-se e Jorge Mario Bergoglio não fez nada que os ponha à prova explicitamente. Mas os movimentos e escolhas que tem feito (e a cobertura mediática que têm tido) criaram uma aura revolucionária em torno do catolicismo. Pelo menos por agora, há uma sensação de que chegou uma nova primavera para os progressistas da Igreja. E, para alguns católicos conservadores, há uma incerteza que não se fazia sentir desde as sequelas frequentemente caóticas do Concílio Vaticano II, nas décadas de 1960 e 1970.
O sector conservador da Cúria nega-se claramente a aceitar que alguma coisa tenha mudado desde que o antigo cardeal e arcebispo de Buenos Aires se tornou Sumo Pontífice. O primeiro momento de perplexidade chegou com a resposta «Quem sou eu para julgar?» à pergunta de um jornalista sobre os padres homossexuais. O grupo mais conservador também não se absteve de criticar uma secção da imprensa acreditada pelo Vaticano, interessada em ver o que quer ver no novo Papa. Ao citar certos comentários e gestos fora de contexto, a verdade é que muitos vaticanistas estão mais interessados em ver Declan Walsh ou Cirilo I do que um verdadeiro Papa cujo quotidiano passa por tentar impor os seus critérios, tanto políticos como de fé, nem que isso implique fazer rolar algumas cabeças. Ross Douthat, no artigo já citado de The Atlantic, criticou duramente a imprensa decidida a representar o Sumo Pontífice como um homem de esquerda:
Alguns dos gestos de Francisco refletem ações que os seus antecessores fizeram sem tanto alarido. Algumas das suas incursões em questões globais, como a abertura a Cuba, dão seguimento a esforços diplomáticos do Vaticano iniciados antes do seu papado. Algumas das suas declarações públicas com tendência esquerdista, como as críticas ao capitalismo global e a ênfase na proteção do meio ambiente, estão em sintonia com a retórica de João Paulo II ou Bento XVI. Alguns dos comentários mais badalados que fez sobre a compatibilidade da doutrina católica com a teoria da evolução, por exemplo, só merecem títulos nos jornais porque certos jornalistas não fazem ideia do que o catolicismo realmente ensina; outros, como a alegada promessa de que os animais de estimação iriam para o Céu, só mereceram crédito por parte de jornalistas que querem acreditar no que for desde que se enquadre na narrativa do Papa «dissidente».
A verdade é que as mensagens de Francisco nem sempre eram fáceis de interpretar. Pessoalmente, acho que Francisco era um ás da ambiguidade. Quando alguém me pergunta por ele, eu digo sempre que era «demasiado argentino»: tinha uma mestria impecável do tempo, das mensagens e da forma de as transmitir.
As excelentes biografias a que recorri para saber mais sobre o sacerdote, arcebispo e cardeal Jorge Mario Bergoglio — e não tanto sobre o Papa Francisco — pintam um retrato cheio de nuances. Por exemplo, a biografia escrita por Elizabetta Piqué, intitulada Francisco. Vida e Revolução, é um retrato íntimo, que evita qualquer polémica, baseado sobretudo nos testemunhos de argentinos que conheceram Bergoglio antes de ser eleito Sumo Pontífice; a já referida biografia da autoria de Austen Ivereigh, intitulada Francisco, O Grande Reformador: Os Caminhos de Um Papa Radical, oferece um retrato da personagem através da história da Argentina; a do escritor católico Paul Vallely, Pope Francis: Untying the Knots [Papa Francisco: Desatar os Nós], descreve-o de uma forma muito diferente, tal como a biografia de Henry Sire (sob o pseudónimo Marcantonio Colonna), The Dictator Pope: The Inside Story of the Francis Papacy [O Papa Ditador: A História Secreta do Papado de Francisco], que transmite uma imagem muito diferente daquela que a imprensa internacional tem dado dele até agora.
Austen Ivereigh descreve um líder católico que teve de fazer frente a difíceis equilíbrios de poder entre a esquerda e a direita, a Igreja e o Estado, e que chocou frontalmente com jesuítas de influência marxista. Mas na Argentina os marxistas não dirigiam o Estado, como na Polónia de João Paulo II ou na extinta República Democrática Alemã de Bento XVI. Para além disso, o facto de a Igreja Católica ter estado envolvida na «guerra suja» argentina teve implicações teológicas importantes para Bergoglio, uma vez que a sua liderança como provincial dos jesuítas, após a reforma de Ricardo O’Farrell, coincidiu com o golpe de Estado militar nesse país sul-americano.
Muitos padres radicais sentiram que a revolução «deles» tinha sido traída, e um destacado grupo de académicos jesuítas ficou mesmo per- turbado ao constatar que o programa de Bergoglio recuperava elemen- tos tradicionais «abandonados» até então. A «guerra suja» argentina, em que os jesuítas de esquerda foram alvo de esquadrões da morte, manchou a imagem do futuro Papa, acusado de cumplicidade na detenção e tortura de dois padres, Francisco Jalics e Orlando Yorio, ambos membros do chamado Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo. Ivereigh e Piqué consideram esta acusação infundada, mas outros biógrafos argumentam que, ao retirar a proteção a Jalics e Yorio, Bergoglio estava a dar luz verde aos esquadrões da morte para prenderem e transferirem os dois jesuítas para a Escola de Mecânica da Armada, a temida ESMA, um dos maiores centros de tortura da Argentina durante a ditadura militar. Efetivamente, os dois religiosos foram torturados durante cinco meses, até que um dia apareceram num descampado vivos e completamente nus.
O escritor Anthony McCarten, autor do famoso Dois Papas, afirma que Yorio não só perdoou Bergoglio, como chegou até a concelebrar missa com ele. O mesmo não sucedeu no caso de Jalics, que nunca esqueceu o facto de Bergoglio não o ter protegido do ataque militar. Seja como for, os casos dos dois jesuítas foram utilizados durante semanas pela imprensa europeia de tendência esquerdista para atacar o novo Papa, quando foi eleito em março de 2013.
Com efeito, em 1979, após o fim do seu mandato como provincial, as políticas de Bergoglio mudaram e até se inverteram. Pouco mais de uma década depois, após um período de cisma entre os jesuítas argentinos — os que estavam com Bergoglio e os que estavam contra ele —, foi enviado para uma residência jesuíta em Córdova, na Argentina. O exílio durou quase dois anos e terminou quando o então arcebispo de Buenos Aires, o cardeal Antonio Quarracino, nomeado por João Paulo II, escolheu Bergoglio como um dos seus bispos auxiliares. O futuro Papa definiu o seu exílio particular como «um momento de purificação interior e como uma noite com alguma escuridão interior»10. O certo é que os principais biógrafos de Francisco concordam que o resgate de Quarracino foi o tiro de partida na corrida de Jorge Mario Bergoglio até à Cátedra de São Pedro. Segundo Ivereigh, essa nomeação marcou o início de uma profunda hostilidade entre Bergoglio e a Companhia de Jesus durante os vinte anos seguintes. Verdade seja dita, Bergoglio nunca mais voltou a pôr os pés na sede dos jesuítas, nem em Buenos Aires nem em Roma.
Para muitos dos seus biógrafos, a história da ascensão, queda e renascimento de Francisco é a típica história da formação de um futuro Papa conservador. De facto, vários académicos católicos conservadores regozijaram-se e viram com otimismo a eleição de Bergoglio. Mas, passados estes doze anos de pontificado, parece mais acertado concluir que estavam enganados: como é possível que o provincial jesuíta dos anos 70, que se opôs aos seus irmãos jesuítas de esquerda, militantes do Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo, do Movimento de Sacerdotes dos Bairros de Lata ou da Teologia da Libertação, se tornasse, nos anos 2010, o «Papa do progressismo»?
No magnífico Pope Francis: The Struggle for the Soul of Catholicism [Papa Francisco: A Luta pela Alma do Catolicismo], Paul Vallely argumenta que Francisco era essencialmente um tradicionalista antes do Concílio Vaticano II, mas que mais tarde, após o exílio na Córdova argentina, sofreu uma espécie de conversão teológica e política ao progressismo. Em contrapartida, Austen Ivereigh defende que esta dicotomia nunca existiu: o jovem Bergoglio nunca foi um verdadeiro tradicionalista, muito menos um inimigo da renovação e da reforma.
Francisco tornou-se candidato papal no Conclave de 2005 e foi eleito Sumo Pontífice oito anos depois, graças aos esforços dos kingmakers, um reduzido, mas influente, grupo de cardeais europeus liderado por Godfried Danneels (Bélgica), Walter Kasper (Alemanha), Cormac Murphy-O’Connor (Inglaterra) e o falecido Carlo Maria Mar- tini, também jesuíta e antigo arcebispo de Milão, um dos mais fortes candidatos ao Conclave de 1978 e desde então batizado como «o Papa que não foi». Na era de João Paulo II, estes quatro cardeais estavam entre os mais liberais e agarraram-se a Bergoglio como candidato ao considerá-lo, de um ponto de vista teológico, mais próximo do centro do Conclave e mais fiável do que qualquer outro do seu grupo. Mas os apoios no Conclave de 2013 foram muito para além da fação liberal. De facto, entre os homens que mais contribuíram para que Bergoglio fosse nomeado Papa estavam os cardeais que mais se tinham oposto aos dois Pontífices anteriores. É algo que Douthat explica de forma bastante clara no artigo «Will Pope Francis Break the Church?»:
Bergoglio teve uma experiência da globalização muito diferente da que tiveram Karol Wojtyła e Joseph Ratzinger na Europa, uma experiência moldada pelas desilusões concretas da sua Argentina natal. Durante a maior parte da sua vida, a Argentina foi um perdedor económico, assolado pela corrupção. Nos anos 80, as taxas de desigualdade e de pobreza registaram um aumento astronómico. No final dos anos 90 e no início da década de 2000, quando Bergoglio era arcebispo, a Argentina atravessou uma grave recessão e depressão económica. O ceticismo de João Paulo II e Bento XVI em relação ao capitalismo e ao consumismo era uma questão intelectual e teórica, mas para Bergoglio a crítica ao capitalismo e ao consumismo tornou-se algo muito mais visceral e pessoal.
Todos estes elementos contribuíram para definir a agenda de Fran- cisco para a década seguinte, uma agenda baseada na reorientação da liderança da própria Igreja para o Sul global. Os seus projetos responderam à sua experiência nos bairros de lata de Buenos Aires e manifestaram-se em repreensões públicas ao clero mundano e carreirista e numa visão — esquerdista? — de uma Igreja das «periferias» (África, América Latina e Ásia).
Garry Wills, um crítico acérrimo do papado, oferece uma perspetiva interessante do futuro do catolicismo no seu livro The Future of the Catholic Church with Pope Francis [O Futuro da Igreja Católica com o Papa Francisco]13. Na opinião deste autor, a forma como a Igreja entende o direito natural, a sua oposição ao aborto e até o sacramento da confissão estão condenadas a ter o mesmo destino que a missa em latim, ou seja: desaparecer. Para Wills, as doutrinas vão e vêm ao sabor dos caprichos da História e dos Papas que governam, e nenhuma ideia ou instituição é necessariamente essencial. A Igreja pode ensinar uma determinada coisa numa época, e na seguinte pode ensinar precisamente o contrário, porque pode mudar a fé como entender para se adaptar a um mundo em mudança. Foi isso mesmo o que aconteceu com o Concílio Vaticano II. Todavia, a maioria dos «progressistas» pró-Bergoglio partilha a ideia de que a «resistência conservadora» em qualquer questão doutrinal pode ser ultrapassada e que o catolicismo nunca deixará de o ser, por mais que seja contestado, modificado ou abandonado.
O estilo de vida simples de Francisco também contribuiu para forjar a imagem do Papa humilde. Bergoglio vivia num pequeno apartamento sabendo que podia viver na sumptuosa residência episcopal de Buenos Aires, preferiu continuar a viajar nos transportes renunciando à limusine e ao motorista e cozinhava todos os dias a sua própria comida. Gostava de ópera italiana, era sócio do clube de futebol San Lorenzo de Almagro, de Buenos Aires, e leitor voraz de Fiódor Dostoiévski e Jorge Luis Borges. Tendia a criticar retrospetivamente tomadas de decisões demasiado precipitadas ou autoritárias. Mas, para além dos gostos e das imagens, o facto é que Francisco estava disposto a usar todos os seus poderes como Bispo de Roma, Vigário de Cristo, Sucessor do Príncipe dos Apóstolos, Sumo Pontífice da Igreja Universal, Primaz de Itália, Metropolita da Província Romana, Soberano do Estado da Cidade do Vaticano e Servo dos Servos de Deus para impor a sua vontade e as suas reformas, quer os sectores mais conservadores da Cúria do Vaticano gostassem, quer não.
Comentários