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O professor Vítor Correia formou-se em Filosofia na Pontifícia Universidade de São Tomás de Aquino, em Roma, frequentou também o curso de piano na Escola de Música de São Teotónio, em Coimbra e é licenciado e pós-graduado em Filosofia, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, entre outros graus académicos.
Nesta conversa com o 24notícias discute a história dos mouros até aos dias de hoje, as figuras históricas - do secretário de Salazar a Fernando Pessoa - a aceitação e a condenação da homossexualidade, temas presentes num livro que partiu do estudo da poesia homoerótica portuguesa.
Este livro é certamente o livro mais completo que existe sobre a história da homossexualidade em Portugal. E começa no século XII. Não havia nenhuma investigação assim no nosso país?
Não, o que eu saiba, não.
Quanto tempo é que demorou a fazer o livro?
Cerca de um ano.
Só?
Só, porque por um lado, não fiz mais nada, por outro já tinha investigações sobre poesia medieval há muito tempo, para um livro de poemas antigos. Um ano, foi a escrita propriamente dita.
Poemas medievais, tipo cantigas de amor?
Sim. Também sou autor de livros como “Poemas eróticos da Antiguidade Clássica” e “Poemas eróticos sobre Frades, Freiras e Padres”. Portanto, já conhecia a poesia homoerótica na poesia portuguesa. E estou sempre em casa, tenho pouca vida social.
A homossexualidade sempre existiu e a percentagem de homossexuais numa sociedade é mais ou menos permanente ao longo do tempo, a diferença está na maneira como é ou não aceite.
Os romanos aceitavam, por exemplo. Os árabes não a aceitam, embora a praticassem. No livro há um capítulo sobre os mouros em Portugal.
É interessante porque a homossexualidade começou por ser considerada uma aberração, depois passou a ser considerada uma doença, psicológica ou até física. Considerando o que o Egas Moniz achava que, fazendo uma lobotomia, curava as pessoas da homossexualidade. E hoje em dia é considerada uma tendência natural, como a heterossexualidade.
Eu tinha um capítulo sobre essas terapias de lobotomia, a análise clínica do Egas Moniz e de outros médicos na Europa, mas que não tiveram efeito. Falta também o Hospital Miguel Bombarda, onde internavam os “pervertidos”.
Também é interessante que em certos regimes, como o da Alemanha nazi, condenassem a homossexualidade, mas permitissem que as pessoas do regime a praticassem.
Já tivemos na Europa alguns políticos importantes assumidos, e há outros não tão assumidos. Mesmo no tempo do Salazar também havia alguns que não eram assumidos.
No tempo do Salazar, havia uma diferença de atitudes conforme a classe social da pessoa em causa. Entre as pessoas do escalão superior da sociedade e as pessoas do regime, fazia-se de conta que não existia. Entre os artistas era tolerada, mas com eventuais repressões, e no povo não era aceite de maneira nenhuma.
Sim, houve prisões, mas a atitude das autoridades era uma coisa assim: os artistas são um pouco malucos, faz parte. No povo não era tolerada de todo, mas no meio artístico, sim.
João Vilarett, Mário Cesariny e os surrealistas tiveram um papel importante na afirmação da liberdade sexual. José Seixas, também havia alguns poetas, Pedro Homem de Melo, por exemplo. E o Ary dos Santos fazia gala nisso,
No povo em geral era considerado um crime, um atentado à moral, incluído no Código Penal.
E isso fazia-se mesmo? Eram julgados e condenados?
Geralmente quando os apanhavam, eram levados para a esquadra e multados. Quando era em público, porque em privado nunca se sabia.
Mas havia casas noturnas?
Não, não havia associações, não havia clubes, não havia nada.
Não havia casas noturnas onde se encontravam?
Para homens e mulheres sim, mas só para homens não havia. Eram “casas de tolerância” para heterossexuais. Havia algumas pensões que alugavam um quarto a dois homens.
Não discutiam o assunto, desde que pagassem.
Alguém me contou que um secretário de Salazar era homossexual. Isso está no livro.
Sim, também. Com certeza que Salazar sabia isso, e fazia de conta.
E o Fernando Pessoa, há indícios nos seus escritos de que seria homossexual.
Ou talvez fosse bissexual, não sei, mas não praticava. Eu acho que tinha mais tendências homossexuais não realizadas, porque as reprimia. Mas as heterossexuais também eram reprimidas. Porque nunca, que se saiba, teve uma relação. Eventualmente seria bissexual, mas vivia só para escrever e mais nada.
Era, de facto, um revolucionário, de certa maneira.
Tem muitos poemas homoeróticos, que as pessoas não conhecem. Vou publicar um livro, dentro de algum tempo, sobre o homoerotismo na poesia de Fernando Pessoa. Descobri muitos poemas que as pessoas não notam.
É claro que também tem alguns poemas dedicados a mulheres.
Hoje em dia, acha que a homossexualidade ainda é reprimida, ou que isso já passou?
Com a subida da extrema-direita, corremos o risco de haver um certo retrocesso.
Mas considera que, na sociedade portuguesa, em geral, nomeadamente fora de Lisboa, a homossexualidade é aceite ou ainda há um certo preconceito?
Claro que sim, em Lisboa e no Porto é mais aceite.
E em relação à Igreja?
Com o Papa Francisco houve avanços. Aprovou a união, não é o casamento, mas aprovou a benção de pessoas do mesmo sexo.
O gesto foi muito avant-garde. Muito atrevido, digamos assim. Porque, os bispos, sobretudo em algumas regiões como África, têm outra visão.
Porque a homossexualidade em África é um bocado promíscua, não é vista como uma coisa com dignidade, como amor, como duas pessoas que se juntam em família, fazem um casal.
Mas a Igreja, na história de Portugal, desempenhou um papel muito negativo, vindo da Inquisição, porque os judeus e os homossexuais e as regiões não-romanas foram muito perseguidas pela Inquisição em Portugal. E eu mostro bem isso no livro.
Cito vários processos da Torre do Tombo. Eram interrogados, davam-lhes uma segunda chance, mas depois se continuassem eram presos, ou degradados para Angola, e alguns eram queimados na fogueira.
A homossexualidade tem dois períodos, considerando as políticas públicas, antes da SIDA e depois da SIDA. Nos Estados Unidos o marco importante é Stonewall, quando os homossexuais em Nova Iorque se rebelam contra a perseguição policial num bar com esse nome.
É um bar que agora é um museu. Um memorial.
A primeira declaração pública, após o 25 de Abril, sobre a liberdade dos homossexuais, foi assinada por quatro pessoas. E no livro não tem o nome delas. Há alguma razão para isso?
Acho que tem. Um deles é o António Serzedelo.
Sim, esse está lá. Mas não como um dos signatários.
Não, está só o nome do movimento. Não pus o nome das pessoas, porque o manifesto não está assinado e penso que é porque preferiram o anonimato. Fizeram o Movimento de Ação dos Homossexuais Revolucionários.
Na Idade Média (476 a 1453) o tom era satírico quando se falava da homossexualidade, em geral?
Era mais uma brincadeira. Quer dizer, não era a sério… Mais a troçar dos cléricos, das infidelidades, crianças de pais incógnitos, mortes por envenenamento…
A condenação e a perseguição aparece na Idade Moderna (1453 a 1789), com a Inquisição. É aí que começa, de facto, a haver perseguição e a queimar as pessoas na fogueira.
E em Portugal?
Uma maior consciencialização pública da homossexualidade surge com o Liberalismo. Foi despenalizada com a legislação liberal. Pouca gente sabe isto, mas está no Código Penal.
Depois voltaram a penalizar. Houve pressões para isso. Mas na opinião pública não houve grandes avanços. Nem na República.
A I República era muito burguesa. Inclusivamente era contra o socialismo, as lutas operárias.
Havia várias facções na I República. Com resultados contraditórios. Por exemplo, foi instituído o divórcio. Mas, na homossexualidade não houve grandes avanços. Um Presidente da República, o Manuel Teixeira Gomes, era homossexual, nem sequer vivia com a mulher, que ficou no Algarve. Ele escreveu vários textos sobre a beleza masculina.
Há um filme muito bom sobre a vida dele na Argélia, “Zeus”. Realizado pelo Paulo Filipe Monteiro, com o Sinde Filipe. Ele ainda era Presidente mas chateou-se com a politiquice no Parlamento, saiu do Palácio de Belém directamente para o barco que o levou para Argélia.
Era um homem muito culto.
Falou do avanço da direita em Portugal - acha que há alguma hipótese que os direitos das minorias voltarem para trás, como está a acontecer nos Estados Unidos?
O que eles são contra é a chamada ideologia de género, que é diferente. Refere-se às pessoas que querem mudar de sexo ou ou não se identificam com nenhum dos géneros. Eles são contra o casamento de pessoas do mesmo sexo, o que não é bem a mesma coisa.
No nosso caso, para a legislatura permitir o casamento homossexual, bastou retirar duas palavras ao texto, que dizia “o casamento é um contrato entre pessoas de sexo diferente”. Ficou só “o casamento é um contrato entre duas pessoas”.
A extrema direita é contra o casamento, mas não é contra as discotecas e os bares gay. Vai quem quer, quem não quer não vai. Não têm no programa deles, em todos os países da Europa, o fecho desses estabelecimentos. A grande luta deles é mais contra os imigrantes muçulmanos. E são contra a ideologia de género, que não é a mesma coisa que a homossexualidade.
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