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A FESTA NA RUA MARANHÃO

Atravessa do Triunfo, no bairro do Tatuapé, Zona Leste de São Paulo, fica no largo do Maranhão. Ali morei por toda a minha infância e adolescência.

Hoje moro na rua Maranhão, no bairro de Higienópolis, onde faço uma festa para comemorar meu aniversário de quarenta e três anos.

Uma amiga da elite carioca, convidada para a celebração, me escreve a seguinte mensagem: «Tati, eu coloquei ‘Maranhão’ e o Uber veio parar num lugar medonho. Se eu demorar pra chegar na sua casa ou o celular não atender mais... você chama a polícia? Vou compartilhar com você o status da viagem, o.k.?»

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Quando a foto da localização dela chegou, apareceu o largo do Maranhão, o lugar em que brinquei tantas vezes quando era pequena. O lugar em que experimentei pela primeira vez uma palmilha para consertar minha pisada «pra dentro» e me senti tão segura que saí correndo pelas ruas, enquanto meu pai desesperado me procurava de carro, com a minha mãe nervosa ao lado.

Meu avô caminhava ali, no largo do Maranhão, depois de todas as refeições, porque acreditava que expelir os gases ao máximo era o que de melhor poderia fazer por sua longevidade. Ali eu empinei pipa, aprendi a andar de bicicleta e conheci Sandrinho, o cara da mobilete verde. Quando chovia, a mãe dele não o deixava andar de mobilete e meus dias não faziam sentido. Minha mãe me ensinou a desenhar com sal, no parapeito da janela que dava pro quintal da casa, um imenso sol. Eu fazia isso até que o tempo abrisse e então ouvia o ronco da motinha. No dia em que Sandrinho finalmente me levou para dar uma volta, cheguei em casa com queimaduras de escapamento nas duas canelas, mas não lembro de sentir nenhuma dor.

Ali, no largo do Maranhão, minha mãe me levava para me distrair dos meus enjoos de sempre. E a gente brincava, no verão, de furar as bolhas de piche do chão recém‐asfaltado com os gravetinhos caídos das árvores.

Senti uma dor e um horror tão grande da minha amiga com medo da minha infância que comecei a passar mal. Senti horror da minha casa, da minha festa, de todas as pessoas. Se eu passar mal e quiser usar o banheiro... vou usar o banheiro desta casa? Que casa é esta? Era a minha casa, mas de repente eu a estranhava e tinha asco de mim e de todos os convidados.

Uma hora antes, contei: somos trinta e quatro brancos, mas temos salvação. Misturados a nós, temos um casal de pretos gays, minha amiga de Brasília que é descendente de indígenas, o marido nordestino dela e minha melhor amiga, Alessandra, que é asiática e trouxe o marido pardo. Pensei que tudo daria certo para nós, progressistas que contratam garçons pretos para nos servir, pensei que tudo daria certo para o Brasil recém‐saído do horror bolsonarista. Pensei que tudo daria certo com a foto que eu postaria no Instagram.

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Contratei os serviços de uma cozinheira chamada Luara. Nunca em toda a minha vida comi uma comida melhor que a dela. Já era a quinta vez que ela vinha cozinhar em casa, sempre em aniversários ou festas de fim de ano. Ela é negra e usa um pano dourado na cabeça, brincos vermelhos, uma roupa branca. Todo mundo que chega fica encantado: «Você parece uma rainha.» A cozinheira é modelo nas horas vagas? Ela toparia aparecer no meu filme?

Sente‐se com a gente, Luara. Você e sua filha não querem se sentar com a gente? Luara explica que não é sua filha. Achei que fosse porque é linda e talentosa como você. Vocês podem se sentar com a gente? Luara explica que já comeu e a menina também. Comeram rápido, meio em pé mesmo, pra dar conta de tudo e não irem embora muito tarde.

Empanturrados, vemos Luara e a menina retirarem os restos de comida da mesa. Algumas pessoas levantam para ajudá‐las. Não precisa. Claro que precisa. Deixa aí. Imagina. Me passa seu prato? Ah, obrigada, agora volta aqui e fica tranquila.

Luara e sua assistente trazem as sobremesas. Puxo palmas para Luara e sua assistente de quem nem sequer lembro o nome. Todos aplaudem. Rainha Luara! Que mulher é esta! Luara e sua assistente não estão achando muita graça, não estão no teatro, não são palhaças, estão exaustas, estão de pé desde as sete da manhã e são cinco da tarde.

Antes de os convidados chegarem, chamo Luara e sua assistente e explico que não aceito mais que usem o elevador de serviço. Na reunião de condomínio desta semana, marcada para falar da manutenção nos elevadores, vou dizer que não aceito mais que as funcionárias do lar usem o elevador de serviço.

Ele serve para carrinhos de supermercado, materiais de construção, mudanças, móveis pesados, cachorros. Não é para separar o morador dos funcionários. Isso não pode mais acontecer. De agora em diante, vocês estão proibidas de andar nesse elevador, por favor!

Luara e a menina se olham, não entenderam nada. Avisam que só dei a elas as chaves da porta de serviço. Jamais dei as chaves da porta com entrada pelo elevador social. Caso troquem de elevador, não conseguiriam entrar na minha casa.

Observo o rosto de Luara ao receber as palmas de dezenas de brancos ricos que foram entretidos por seus dotes culinários e tenho certeza de que estou me tornando uma daquelas pessoas ridículas e odiosas. O tipo de gente que, por alguma razão, eu sempre quis ser e, ao mesmo tempo, sempre quis destruir.

Sentados comigo na mesa de jantar estão alguns amigos que fiz no tempo em que era próxima de Marcela, mas já faz uns quinze anos que rompemos a amizade. Marcela é o tipo de gente desinteressante que precisa ser má para que suas palavras disfarcem sua figura atônica, mas eu ainda não sabia disso quando fui convidada para passar um fim de semana em sua imensa casa em frente a uma praia privê. Ou sabia, mas quis ir conferi‐la mesmo assim.

No primeiro almoço, serviram de sobremesa mangostão, longana e rambutã. Eu não sabia o que eram, nem como deveria começar a comê‐las, e fiquei paralisada. A família dela caiu na risada: «São frutas exóticas.»

Livro: "Boba da Corte"

Autor: Tati Bernardi

Editora: Tinta-da-China

Data de Lançamento: 5 de junho de 2025

Preço: € 17,90

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Vendo o divertimento curioso dos pais e dos irmãos, Marcela deu início ao meu espetáculo. Fora para isso que eu havia sido convidada: «Conta, Tati, aquela história do Corsinha? Que sua mãe vivia tensa, com medo de assalto e sequestro, porque você voltava tarde do trabalho, pela Radial Leste, então ela mandou colocar uma película escura demais no carro, alguns adesivos do Corinthians e ainda te deu um gorro de mano! Conta, conta!!!». E todos se divertiam. O pai dela interrompeu a história dizendo que o serviço de blindagem, caso a família levasse três carros de uma só vez, estava com quinze por cento de desconto numa oficina perto do escritório dele.

Um dia estávamos na jacuzzi e o pai dela, com uma imensa ferida na perna, tecidos internos expostos, entrou na banheira sem nenhum curativo. Aquela coisa aberta, purulenta, ao meu lado. Me virou o estômago. Marcela falou: «Ai, pai, credo.» Ele sorriu e olhou pra mim. Era como se dissesse: sou tão rico que posso fazer o que quiser e você está tão deslumbrada pela minha casa que não vai sair desta água. E eu ainda demorei alguns minutos para sair.

Não pertenço aos herdeiros brancos com quem ando hoje em dia, contudo, sou branquíssima, ganhei algum dinheiro e minha filha provavelmente será uma herdeira. Quando criança, eu ouvia os meus tios comemorando: «Ela vai se dar bem, nasceu bem branquinha, com cabelos quase loiros e olhos quase claros.»

Nunca saberei o que Luara sentiu ao ser aplaudida em um dos bairros mais caros da cidade. Nunca sofrerei racismo, nunca saberei o que sente uma mulher negra, periférica, que chegou de madrugada na minha casa para descongelar uma quantidade indecente de frutos do mar e ainda está de pé no fim do dia, aturando nossas almas generosas e festivas.

Então que nome posso dar àquele sentimento de quinze anos atrás, quando eu, branca, meio loira, servi de boba da corte, no feriado da Páscoa, para a família branca e loira de Marcela? Que nome dar ao horror que sinto agora dessas pessoas que se parecem comigo e que, aos poucos, fui imitando e me tornando?

Semana passada encontrei o pai de Marcela na rua. Agora eu morava a poucas quadras dele. Ele berrou ao me ver: «Nossa, quanto tempo! O que você tá fazendo aqui?!». Nesse «aqui» cabia tudo o que há de pior nessas pessoas.

Marcela durou pelo menos uns seis meses na minha vida. Trivial, enfadonha e ardilosa, ela me levava às festas como boi de piranha. Preparava as pessoas dizendo que eu tinha problemas de cabeça e de grana. Ela me jogava antes na fogueira, me diminuía, acreditando, assim, estar isenta dos olhares que tanto temia. Passou a vida tentando agradar o pai, que a tratava com desdém e só celebrava o primogênito executivo.

«Conta aquela, vai, do dia que você ganhou uma estadia em um hotel de luxo e foi passear em um campo todo bonito, sem entender por que ele era tão bem cuidado e aparado, daí foi achando pequenas bolinhas brancas e, muito bondosa, foi pegando todas pra devolver na recepção. Até que apareceram os jogadores de golfe querendo te matar.»

Amigo íntimo dos monarcas, o bobo da corte é sabidamente o único que conhece a fundo as podridões de todos e, protegido pelo humor, pode humilhá‐los. Talvez por isso eu suportasse as benesses daquele mundo? Era um pacto que eu fazia? Sou a fruta exótica deles, mas depois os cuspirei chupados e ressequidos.

Minha amizade com Marcela acabou no dia em que vi, no cinema, o filme Balada de um homem comum, dos irmãos Coen. O personagem de Oscar Isaac é um artista fodido, que dorme de favor na casa de conhecidos, entre eles um professor bem‐sucedido que, em um jantar, pede que o protagonista toque e cante uma música. Ele nem sequer tem onde passar a noite, mas se revolta e se recusa, dizendo que está cansado de rebaixar sua arte e seu talento para dar uma nesga de vida a pessoas que o exploram e são tão desprovidas de qualquer brilho. Não sei se foi exatamente isso o que ele falou, mas é assim que eu me lembro.

Não foi apenas com Marcela que senti a necessidade de improvisar malabarismos linguísticos e showzinhos cômicos. Talvez por isso eu tenha tanto horror a esses palhaços que pedem dinheiro em faróis e entradas de shoppings. Palhaço é uma instituição complicadíssima de atacar. Ela mexeu com palhaço! Aquela escritorazinha desgraçada mexeu com palhaço!

Alguns desses palhaços usam a referência infantil, desarmada, pura, para fazer comentários de cunho sexual para as mulheres que caminham temerosas pelas ruas. Carregam sordidez no olhar, mas ostentam um coração na bochecha e uma flor na gravata.

Te dizem alguma obscenidade. Você não acha graça. Te xingam, acham que você deveria rir, vão ficando irritados e porque são palhaços e porque atrizes de esquerda fazem curso de clown e porque todo comediante faz post emotivo no dia do palhaço, pega mal odiá‐los.

Cresci com minha mãe dizendo «eu odeio palhaço, odeio circo» e uma vez perguntei a ela o motivo e ela respondeu que minha avó também os odiava porque «estavam sempre amassados». Minha avó era obcecada por asseamento e roupas impecavelmente passadas, o que claramente era um jeito de a gente se diferenciar das pessoas pobres, nossas vizinhas no largo do Maranhão. Não gostavam de palhaço porque era o pobre a serviço do riso alheio.

A amiga da elite carioca tenta não morrer no exatíssimo lugar em que nasci. Largo do Maranhão no Tatuapé não é rua Maranhão em Higienópolis. E eu jamais poderia retornar para o lugar de onde vim, tampouco sentia que podia me sentir bem de verdade no lugar aonde cheguei.

Quem sou eu aplaudindo cozinheiras? Recebendo famosos, atrizes, políticos? Quem sou eu com essa minha amiga que estava com medo de morrer no lugar da minha infância?

Há pelo menos cinco anos este livro quer sair de mim. Tento escrever qualquer outra coisa e quase durmo em cima do teclado. Sempre que me protejo demais minhas mãos protestam com tendinites. Se ouso começar um parágrafo na terceira pessoa, as letras se embaralham, a tela do computador escurece e quase me deixo enganar, pensando que preciso marcar oftalmologista ou neurologista. Este é o livro que você quer escrever. Você quer escrever sobre uma vida inteira dedicada a chegar a este lugar que você nunca (nunca, nunca) chega. Este lugar onde você já está há tanto tempo, mas é impossível aceitar que era «só isso». Que as pessoas desse mundo não são nada de mais. Que a vida delas não tem nada de muito interessante.

Começou a ânsia e, na sequência, a hiperventilação e a enxaqueca. Me sinto assim há tanto tempo e sei que uma vez que começam não há nada a se fazer além de deitar em silêncio e no escuro. E emburacar por algumas horas. Fui ao banheiro e enfiei de uma só vez Rivotril, Vonau e Novalgina na boca. Talvez na esperança de que eu conseguisse seguir com a festa e com aquele apartamento e com aquelas pessoas. Meus amigos há dez anos. Alguns há dois meses. Não tenho amigos de infância ou de adolescência. Com quais desses posso ser a anfitriã que não aguenta e passa mal? Qual deles posso deixar ficar aqui e ver que estou tremendo demais, estou triste demais e que não entendi se aplaudir Luara tinha sido a coisa mais ridícula que já fiz na vida?

Fiquei paranoica achando que morreria por ter tomado os três remédios juntos. Morrer nessa casa com essas pessoas. Onde estava a minha mãe e a minha casa e o meu banheiro? Quem eram aquelas pessoas fazendo fotos comigo, perguntando onde comprei meus quadros? Chamei Rafael e pedi que ele expulsasse todo mundo. «Como assim expulsar todo mundo?» A polícia chegou porque o som estava muito alto. A polícia não chegou para salvar minha amiga lá no largo do Maranhão, mas para me salvar da elite intelectual que jamais iria embora do meu apartamento. O alívio que eu senti. Abaixei o som e falei que, infelizmente, por causa da polícia, a festa tinha acabado e todos teriam que ir embora. Riram da minha cara, a polícia não faria nada com a gente. Rafael andava a passinhos curtos de um lado para o outro. Querendo e precisando agradar nossos amigos.

Alguns deles somente seus amigos. Foi tão bem‐educado. Era sempre tão insuportavelmente bem‐educado. As mãos quentinhas protegidas nos bolsos da calça. Seus dedos cobertos em público e exploradores de cu depois que todos iam embora. Eu o amava ou apenas tinha descoberto, aos quarenta e três anos de idade, a intensidade de um orgasmo anal? Eu estava viciada em seus dedos que se enfiavam todos e inteiros em mim? Sem nojo, sem pudor, mas de repente o dedo se eriçava em riste, o grande educador. Isso pode, isso não pode. Não ficarei com uma mulher que debocha e sente raiva. Isso não pode.

Seus ombros, sua maneira reta de sentar, a voz pausada. É o homem mais educado que já conheci. Ele olha para mim, observa a maneira como crio minha filha, como se eu precisasse ser interditada. Falo palavrões, perdoo os excessos, compro coisas demais, damos risadas altas demais, a deixo comer no sofá, a cara toda suja de aveia, e ela é feliz, ela é livre, ela é livre até demais, eu sei, porque às vezes me chama de idiota e me chuta de leve as pernas, mas em algum lugar sinto que ela precisa soltar seus demônios em mim. Sou a parede segura para ela sentir com a ponta dos pés que tem uma borda no seu entorno. Eu fui uma criança que não podia chutar, gritar, e sofro com crises de pânico há mais de trinta anos. Eu não lhe imponho limites quando a percebo perdida em sua intensidade, mas lhe estabeleço a barreira das minhas pernas para que ela chute. Provavelmente estou errada, mas o olhar lançado por ele a mim era mais do que ajuda, preocupação: era correção.

Eu sujei o sofá da mãe dele com a roupa purpurinada que comprei especialmente para minha filha passar o Natal em sua casa e ser amada dentro daquela família. Ele me deu uma bronca. Jamais vou esquecer daquele momento e jamais vou entender por que não fui embora definitivamente naquele segundo:

«A roupa dela está sujando o sofá da minha mãe.» Entendi assim: a sua filha, a maneira que você cria sua filha e como você foi criada estão sujando o sofá da maneira como eu fui criado.

Será que ele via em mim a imensidão desenfreada do afeto que a ele talvez tenha sido negada na infância? A imensidão desenfreada do afeto que seus amigos ou antigas relações negaram e negam aos próprios filhos, pela necessidade da elegância, do comedimento e da boa educação? Pelo primado do intelecto? Será que ele via em mim o amor italianado, ou até suburbano, da mãe que caga para todo o academicismo cagador de regra sobre os limites da relação entre mãe e filho?

Fomos ao casamento da melhor amiga dele. Todos ali, amigos tão queridos de uma vida inteira. Amigos tão queridos da família, amigos queridos de outros casamentos. A palavra «querido» não saía da boca dele. Um querido. Uma querida. O queridíssimo. Eu desesperada para saber se tinha pelo menos uma pessoa de quem ele não gostava. Me dá só uma, por favor. A certa altura o noivo lê «seus votos» para a noiva e é o pior texto já cometido por um ser humano adulto sem qualquer sinal de afasia. A mulher se chamava Antônia. E, então, ele começou: «A de amor. N de nada que eu faço da vida sem ela vale a pena. T de tonta quando tenta arrumar uma briguinha do nada.» Eu sorri pro meu namorado. Naquele sorriso discreto eu implorava: «Seja nosso, vamos rir e formar um pacto verdadeiro, isso não significa que você não possa amar essas pessoas, pertencer a elas, eu mesma posso gostar muito delas, respeitá‐las, mas ao rir comigo, ainda que pouco, ainda que apenas dentro dessa delicinha chamada casais que usam o humor para sobreviver, nós confirmamos que somos a casa inabalável que acontece e existe separadamente deles.» Ele me fuzilou com olhos de grande educador. Ao rir de como a elite pode ser boboca, eu ria dele.