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“A nossa missão não é dar comida, é retirar pessoas da rua”. Nuno Fraga projeta a marca de água da Comunidade Vida e Paz (CVP), Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) nascida em 1989 pela mão do Patriarcado de Lisboa.

Nuno Fraga é voluntário desde 2007 desta instituição de referência que lida com as pessoas em situação de sem-abrigo em Portugal, uma realidade complexa e desafiadora.

Acumula infinitas noites que se transformam em incontáveis dias de voluntariado. Conhecedor do terreno que pisa, tem idade, e estatuto, suficiente para abordar a problemática e complexidade do tema que afeta mais de 13 mil pessoas em Portugal, de acordo com os últimos números disponíveis (dados de 2023).

“Já tenho a maioridade”, graceja sobre um assunto a merecer a maior das seriedades.

A imagem da pessoa em situação de sem-abrigo veste-se de estereótipos: Homem, mais de 50 anos e mergulhado nas dependências de álcool e drogas. Mas, hoje, a rua tem novos inquilinos e nos rostos invisíveis à vista de todos cabe outra variedade. Aliás, várias.

Novos menus para os novos migrantes. Sem carne de porco 

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“Podemos começar pela nacionalidade. Há uns anos, tínhamos muitas pessoas vindas dos PALOP’s. Depois, passámos para pessoas vindas do Leste, ucranianos, romenos. Hoje, temos mais a vertente de pessoas da Índia, Paquistão e Bangladesh”, identifica.

A mudança de latitude, cultural e religiosa, obrigou a associação a encontrar novas soluções para velhos problemas. Perante o desafio, nas longas voltas noturnas de distribuição de refeições, “há dois anos, começámos a levar menus “no pork”, isto é, sanduíches sem fiambre e afins, por questões religiosas”, assinala ao 24notícias.

“Tivemos que nos adaptar e tem muito a ver também com o tipo de perfil de pessoas que temos na rua em relação à nacionalidade e à questão cultural-religiosa”, continua.

Fala sobre um dos novos alvos da ajuda da CVP. “É uma população mais volátil. No verão, alguns “desaparecem”, ao arranjarem trabalhos agrícolas, em especial”, anota.

Horácio Félix, Presidente da Direção da Comunidade Vida e Paz, espera que a “alteração da lei de nacionalidade”, provoque mudanças “e os que estão desempregados, é natural que encontrem emprego, uma vez que possa haver diminuição do número de entradas”, extrapola.

A imigração prende a atenção do responsável máximo da organização com 36 anos. Recorda que as imagens da Igreja dos Anjos – imigrantes a viverem em tendas – “foram muito politizadas” assunto já resolvido pela Câmara Municipal de Lisboa (CML).  

Fixa-se nas idiossincrasias das novas gentes. “A confiança, confesso, são difíceis de ganhar, especialmente se for uma população com quem temos poucas afinidades culturais, religiosas, torna tudo um pouco mais difícil”, admite.

Desculpabiliza-os. “Sentindo que não são cuidados com dignidade, muitas vezes têm receio de serem ajudados e facilmente se deslocam de um local para o outro porque não têm confiança nas instituições, por circunstâncias da vida, que os levaram, por exemplo, até chegar a Portugal, muitas vezes em situações de exploração”, narra.

Uma língua e religião comum facilitam a comunicação, mas a diversidade cultural e religiosa não serve de obstáculo à ajuda prestada. “Existe uma comunicação e linguagem universal, facilmente atendida: a comunicação do cuidado do outro, da bondade que ultrapassa as dificuldades naturais das circunstâncias”, reconhece. 

A inexistência de um algoritmo para a solucionar a habitação 

Mas a novidade na rua não se cinge à população migrante do Indostão. “Notamos um aumento de mulheres. Embora quantitativamente reduzido, aparecem algumas grávidas, com as problemáticas que essa situação provoca”, realça Horácio Félix.

Nuno Fraga, veterano voluntário, acrescenta mais um dado ao complexo quadro. “Temos notado algumas pessoas que não são a tradicional situação de sem-abrigo, não estão na rua, mas estão em situação de vulnerabilidade social”, diz.

A explicação? “Tem muito a ver com a questão da habitação”, refere. “Muitas vezes, temos aquela pessoa que ainda tem a casa ou quarto, paga a renda, mas sobram-lhe meia dúzia de euros e aparecem nas carrinhas para receber a refeição”, conta.

A subida dos preços (rendas) da habitação tem, obviamente, um lado B da moeda e pode derivar na perda de um teto. “Algumas pessoas que, até há dois ou três anos tinham um quarto, nem falo de casas, neste momento estão na rua”, acrescenta.

Para este problema global ainda não foi descoberto um algoritmo que resolva a lei da oferta e procura. “Acho que, infelizmente, vamos ter mais pessoas a cair na rua, nomeadamente pela questão da crise habitacional”, perspetiva Nuno Fraga. Por isso, o grande desafio “é conseguir que se as pessoas caírem na rua, não caiam na dependência”, conjugação que, facilmente, se transforma numa tempestade perfeita.

A habitação é um tema quente e Horácio Félix não foge à introdução feita por Nuno. Deixa, contudo, uma salvaguarda. “As pessoas que sofrem de problemáticas de adição ou doença mental não estão propriamente ligadas à falta de habitação”, separa. “Digamos que é uma problemática a nível da doença”, identifica.

“No entanto, também aparecem pessoas que, por razões de falta de estrutura financeira, acabaram por ficar na rua, seja devido ao aumento do custo das rendas, quer por situações muitas vezes familiares, como divórcios e acabam por perder as casas. E como solução imediata, têm a rua”, aponta.

Abre uma porta de esperança para alguns desses casos. “As pessoas que ficam na rua por questões económicas, se tiverem apoios rápidos, facilmente encontram algumas soluções e ordenam facilmente a sua vida”, antevê.

Todavia, “se não conseguirmos ajudá-los num breve período de tempo, a situação vai-se agravando e a vida na rua começa a ser normalizada e é mais difícil encontrar a solução”, sublinha Horácio Félix, presidente da CVP.

A democratização da droga e o crescimento do consumo

Outrora divididos em dois grupos padronizados, “pessoas com problemas de dependência e outros com problemas de saúde mental”, os olhos de Nuno Fraga, voluntário da terça-feira, em Alcântara, Lisboa, testemunham uma derivação.

“Hoje, temos pessoas com problemas de dependência a que se associa a falta de saúde mental, que pode ser decorrente da adição das drogas químicas e afins”, alerta.

Horácio Félix reafirma a preocupação com este flagelo. “Notámos o recrudescimento do consumo de substâncias psicoativas, especialmente drogas sintéticas, que provocam uma dependência muito grande, abrangem muitos jovens e também já imigrantes”, avisa o presidente da instituição de apoio aos sem-abrigo.

O aumento do consumo de droga salta à vista de quem calcorreia as ruas da cidade de Lisboa, por exemplo. Um dano colateral que adensa, ainda mais, a situação de quem tem as arcadas ou cartão como casa e teto.

“O que hoje anda no mercado acaba por ser mais destrutivo. Não estou a dizer que as outras não o são, mas essas são mais destrutivas”, expõe Nuno Fraga.

A fácil acessibilidade agrava o problema. “Antes, a droga era um vício caro. Hoje, o crack é barato e, por meia dúzia de euros, consegue ter a dose do dia”, dispara.

“Vou pôr totalmente entre aspas: a droga “democratizou-se”. Já não é preciso muito dinheiro para ter acesso”, sustenta. “Estamos a voltar um bocadinho há 15 anos e notamos um aumento de pessoas a consumir”, lamenta.

Nuno Fraga circula no roteiro de ajuda na zona da Avenida de Ceuta. No percurso, vê mais pessoas e caras conhecidas de outras paragens. “Numa terça-feira, encontro-os em Campolide (Lisboa), daqui a 15 dias vou encontrá-los na Avenida de Ceuta, foram ao Loureiro (bairro vizinho) fazer a compra. 15 dias depois apanho-os em Alcântara, mais 15 dias e volto a apanhá-los no Loureiro e assim sucessivamente”, descreve.

Apesar do dramático contexto, há algo a insuflar a alma de Nuno Fraga, voluntário que soma quase duas décadas dedicadas às voltas da Comunidade Vida e Paz. “Felizmente, temos vindo a retirar muitas pessoas da rua. E, felizmente, uma elevada percentagem não recai e não volta para a rua”, expressa a sua visão.

Uma população esquecida, alerta a CVP

Horácio Félix, Presidente da Direção da CVP desde 2017, membro da direção desta ONG desde 2012, partilhou preocupações e cogitações da associação que iniciou nos anos 1990 do século passado a atividade de intervenção social junto das pessoas em situação de sem-abrigo e alargou, entretanto, o raio de ação ao Tratamento e Reabilitação executado pelas Comunidades Terapêuticas e de Inserção e às unidades de Apoio à Reinserção.

O primeiro, procura reabilitar homens com adições (toxicodependentes e/ou alcoólicos) com ou sem patologia mental em regime residencial. O segundo, visa integrá-los na vida ativa e ajudá-los na procura de alojamento condigno.

Deixa uma nota prévia da ação da instituição. Não se trata de arranjar um teto, mas sim de capacitar a pessoas e restituir dignidade humana a quem lhes surge pela frente.

Entre os rostos invisíveis, cresce uma outra realidade sombria que obriga a instituição social a reinventar-se. Horácio Félix aborda uma nova realidade. “Pessoas na rua, especialmente com problemas de adições ao álcool e substâncias psicoativas, com doença mental, já com alguma idade, 50, 60 anos, algumas com 70, para os quais não existem propriamente respostas adaptadas à sua situação e à sua realidade”, alerta.

“Precisam de uma estrutura semelhante a um lar, onde possam ser acolhidos, tenham acompanhamento diário para terem um resto de vida com dignidade”, sinaliza.

As políticas públicas e os filhos de um Deus menor

O alerta entronca no discurso que se segue. As necessidades e gestão das pessoas em situação de sem-abrigo, são, hoje em dia, outras. As políticas públicas, por sua vez, carecem de atualização na ajuda às instituições.

Este é o entendimento de quem lida com o problema de frente. O presidente da Comunidade Vida e Paz considera, por isso, que as políticas públicas, geralmente, são “reativas” às situações e “têm dificuldade em ser proativas”, vinca.

Exemplifica. “Para os de mais idade, que estão na rua, e que nunca mais vão conseguir viver em autonomia plena, não existe uma política pública dedicada”, lamenta.

“Já referimos essa necessidade de termos uma resposta social adequada a essas situações, ou pelo menos, uma forma de integrá-los em lares, de forma a serem acolhidos e terem um resto de vida com dignidade”, particulariza.

Dá outro exemplo de falha das políticas públicas. “A Segurança Social criou, e bem, respostas de mobilidade verde, apoio a fundo perdido às instituições para a aquisição de viaturas elétricas, mas as instituições que trabalham com estas respostas sociais das pessoas em situação de sem-abrigo não foram contempladas”, lastima.

“Isso acontece, infelizmente, com demasiada frequência. Quem trabalha com as pessoas mais frágeis e pobres, fica esquecido pelos poderes públicos e não somos lembrados nas políticas públicas”, constata.

Para o cónego Horácio Félix, as equipas procuram a “dignificação” de pessoas em maior fragilidade, mas, na análise feita à relação com o Estado, sente que estas mais parecem fazer um trabalho em prol de “filhos de um Deus menor”, classifica.

No mapa das pessoas em situação de sem-abrigo, a maior mancha está em Lisboa, Porto e Algarve. Horácio Félix defende o princípio de subsidiariedade de atuação, isto é, normas gerais, mas aplicação local. “É evidente que as grandes linhas serão uniformes, mas a concretização de medidas tem que ser adaptadas à realidade dos espaços”, refere.

“Em Lisboa, temos medidas que devem ser aplicadas na Área Metropolitana de Lisboa (AML), de forma a evitar que o município dê mais cuidado à pessoa em situação de sem-abrigo, e isso terá como consequência que pessoas do concelhos limítrofes se desloquem para este, já que é aí que detêm mais apoio”, exemplifica.

“Terão que ser medidas, tanto quanto possível, articuladas entre toda a Área Metropolitana”, adianta, referindo o trabalho contínuo desenvolvido com a CML. “Entre o que é desejável e o possível, há sempre uma décalage grande, mas tem sido um trabalho frutífero e espero que continue ”, suspira.

“Tudo isso implica um trabalho muito árduo dos nossos técnicos, dos nossos voluntários, e também, naturalmente, dos poderes públicos”, reclama.

O jogo on line

O presidente da Comunidade Vida e Paz partilha preocupação face a um desafio que a instituição enfrenta e cuja origem nasce numa adição antiga que surge revestida no século XXI: “as dependências do jogo e também de tudo o que é virtual”, avisa. “É nova, ainda não sabemos o que é que vai acontecer”, completa.

“A nível do jogo já temos experiência, quem jogava no casino, tinha que se deslocar ao local, comprar as fichas, etc. Neste momento é tudo mais fácil, faz-se em casa, dentro do carro, no telemóvel, mas as consequências nefastas continuam”, alerta.

Esta é mais uma peça do cubo mágico que os voluntários têm em mãos.

“Tocar a vida de 900 pessoas”

Imbuído de altruísmo, para fim de conversa, Horário Félix deixa o retrato de quem escolhe a Comunidade Vida e Paz como modo de vida.

E, quem é o voluntário de hoje? “Há de tudo, em termos de idade, temos muitos jovens, profissões e credos”, frisa Horácio Félix. Na diversidade, há algo de transversal. “O olhar para o outro como uma pessoa e, dentro daquilo que é possível, cuidar e ajudá-lo a reencontrar o seu sentido de vida”, sintetiza.

Enfrentam problemas antigos e desafios novos que surgem na agenda das instituições de solidariedade social, em geral, e à CVP, em particular.

“Temos cerca de 600 voluntários”, contabiliza. Esta rede que não dorme está distribuída por quem “elabora as sandwiches, as ceias, os bancos de roupa”, nos “centros terapêuticos” e quem presta “apoios, na área da espiritualidade, e não religiosidade, porque são dimensões diferentes”, considera.

Diariamente, a CVP “toca a vida de cerca de 900 pessoas em situação de sem abrigo, de fragilidade social, ou que estão em fase de tratamento”, calcula.

Desses, “cerca de 500 estão na rua”, as restantes divididos entre as “comunidades terapêuticas e de inserção, apartamentos de inserção e no apoio pós alta”, enquadra.

Os voluntários são, também eles, “tocados” e dotados de “uma virtude muito grande”, considera. “Os nossos voluntários dão muito valor a ter emprego, casa, comida, e muitas vezes só contactando com essa falta e com pessoas que têm essa falta, é que conseguimos dar valor àquilo que temos”, refere.

Para alimentar o exército de voluntários e profissionais, é necessário dinheiro. Do valor total, que é público, cinco milhões de euros, “cerca de 40% do orçamento da CVP provém dos nossos benfeitores”, quantifica. A restante fatia cabe ao Estado.

“Digamos que é uma receita. Não está segura no início do ano e a direção está sempre com o coração nas mãos, para saber se o dinheiro que existe é suficiente para respeitar os compromissos assumidos”, alerta.

“Somos pessoas de fé, neste caso mesmo, temos provas comprovadas da ação de Deus na nossa vida e quando estamos muito aflitos acontece sempre algum milagre que nos permite sobreviver”, conclui Horácio Félix, presidente da Comunidade Vida e Paz.