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Talvez escrevendo...

Barcelona

Luz e sol e pintura
Sobre o telhado à noite a lua cresce
Abro os olhos como um barco pelas ruas
No entanto outonece

Em que pensava Sophia quando escreveu estas linhas, na cidade que há muito deixei de considerar estrangeira? Uma mulher agradece luz, sol e pintura, o espreitar da lua sobre o telhado quando o dia adormece, amanhã será outro. O olhar dela, a cujo navegar tanto devemos, voa do porto e espraia‐se pelas ruas, em busca de versos que a esperam e pelos quais passámos numa cegueira de gente normal. (Ah!, este adjectivo, que assegura vitória estatística e estrondosa derrota na busca do silêncio para lá das palavras – pacificado; definitivo; inteiro.)

No entanto... Ou seja: apesar de tudo o resto. A Barcelona caleidoscópica e a navegação prenha de Sophia não evitam a reticência, o aviso, o agoiro – outonece. O mundo? Barcelona? Sophia, que por pudor ou melancolia evita a primeira pessoa do singular? Não sei, mas o poema sentou‐se a meu lado.

Adopto os dois primeiros versos sem receio de perjúrio, o terceiro faz‐me sorrir. Não preciso que mo digam, sou incapaz de navegar as ruas, limito‐me a andar sem as ver; (per)corro‐as. Aos «no entanto» estou habituado, é raro que não matize uma afirmação com dúvida imediata, mais do que para os outros, para mim; realidade e sonho habitam‐me sempre com o fantasma do seu avesso. É cansativo, amiúde paralisante.

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Fujo e desaguo no verbo. Em termos de calendário é simples – pese embora o caos climático, o Outono ainda sobrevive, e, contudo, as estações bem definidas da minha infância não passam de recordações. (Segunda quinzena de Agosto marés vivas, primeira de Setembro e as ondas em retirada, a bola e nós corríamos pela areia molhada, nessa Aguda que minha Avó declarava a transbordar de iodo.) Mas de que Outono se fala? Do de Barcelona? Visitei‐o tantas vezes que cavalgo os disputados bancos que anunciam a Rambla por direito próprio, se alguém duvidar rapo do cartão de cidadão com sobranceira tristeza, «Está a ver? Onde já vão os sessenta e cinco, eu e o livro levantar‐nos‐emos quando nos der na real gana, nos quedamos, coño».

Ninguém o faz, a idade nota‐se. Qual? A das articulações crepitantes ou a de neurónios que, teimosos, arrastam os pés e viram costas à ampulheta do tempo, usando‐me como álibi, «Se o tipo detesta areia porque a respeitaríamos nós?». Ocupo, desafiante, o banco, mas olho em volta e não me reconheço neles, os velhos, alguns bem mais jovens na aparência, outros na agilidade, não poucos na rapidez com que trucidam o sudoku e as palavras cruzadas.

Pois que seja então Outono em Barcelona. Recuso casar o verbo outonecer e Sophia, as suas palavras são feitas de luz mediterrânica e nojo por injustiça e mediocridade, quem assim se bateu será lembrada, primaveril, na Granja da sua meninice. (E da minha adolescência intimidada, as miúdas eram apetecíveis, mas demasiado finas. Bom, todas eram demasiado qualquer coisa para mim naquele tempo!)

Serei eu a outonecer? Por uma questão ética – não viverei já em pleno Inverno? – procurei verbo mais carregado. Mas invernecer não existe e invernar é mais para os ursos, embora eu tenha feito dessas figuras ao longo da vida. Das ofertas do dicionário só retive entorpecimento. Aceito. Junto‐lhe inseguro e melancólico, um perfil vai surgindo, como os rápidos esboços dos artistas de bolsos vazios, Rambla abaixo. Eu pasmo, chumbei sempre a desenho, o vaso na secretária do professor, aos meus olhos, assumia requebros picassianos tão abstractos que o professor se condoía, «Ó Júlio, é mesmo isso que vês?», e dava‐me um nove para não agredir a média.

Entorpecido, aceito.

«Envelhecer é ver morrer», escreveu Juan Luis Panero. Amigos, cães, sonhos. Durante anos acariciei o medo da morte, hoje tremo ao imaginar o caminho até lá chegar – O que eu andei..., escreveu e cantou o Zé Mário –; não existir será apenas um regresso. Sempre sorri ao ler frases de circunstância, tecidas à volta de perdas irreparáveis, vazios impossíveis de preencher. Dispenso tais fogos fátuos, só ambiciono surgir, aqui e ali, nas histórias partilhadas pela tribo à volta da mesa de Cantelães.

Não vale a pena mentir‐me – outoneço em sobressalto. Não é agradável, mas não conheço outra forma de atrasar esse entorpecimento que me namora e desafia para o sofá, comando em punho, canais percorridos mas não vistos; embrutecido. A frase de Neil Young, que me gelou há décadas, dança pela sala – a ferrugem nunca dorme. Sei que se aproxima, passo a passo; sei que não há fuga possível; sei que um dia me tomará nos braços para um volteio sem regresso.

Morrer a caminho da morte. Um muro que surge do nada. Sem aviso ou hora marcada. Democrático, trava‐me o passo rumo a todos os destinos, do mais prosaico ao menos expectável. Talvez destino não seja o termo adequado – masculino e singular... –, busquemos‐lhe o avesso: é de palavras que falo.

O muro que mas nega pode erguer‐se na clandestinidade do pensamento ou nas entrelinhas de uma conversa. A segunda hipótese é mais humilhante, dou comigo a pedir ajuda a quem já imagino espantado – «Como pode ter uma branca destas?» – ou a refugiar‐me num sinónimo rasca. Pessoa, utensílio ou lugar cabem num «coiso» apressado; mudo o tema em discussão; acelero o débito verbal; antecipo a despedida.

Tudo para fugir à realidade que o Outro presenciou; lembrará; julgará; espalhará aos quatro ventos e a dezenas de ouvidos. Ou talvez não, por que raio decreto falecidos o pudor, a delicadeza, a própria amizade? De qualquer modo o episódio permanecerá no meu ruminar, tornado falante sem as preocupações morais de grilo célebre, empurrando‐me sem piedade para um verbo sombrio – esquecer.

(Sombrio e multifacetado. Quando digo que sou esquecido, falo de quê? Da recusa de factos, gentes e situações virem à superfície da minha consciência? Neste contexto, sim. Noutro... Ser esquecido por alguém que não conseguimos esquecer, por exemplo. As mesmas palavras; duas pessoas; uma seguiu em frente; outra guarda‐lhe a sombra; a love that should have lasted years.)

Tempos houve de esquecimentos pacíficos. Tinha uma visão espacial da memória, uma vez atafulhada de acontecimentos, actuais e passados, cederia; afinal não nos podemos sentar em cima dela como de malas que protestam no fim das férias – «Não dá, homem, quem te mandou entrar na livraria se sabes que és incapaz de sair de mãos vazias e bolsos cheios? Para não falar da roupa suja, em busca de maior espaço vital pela tua falta de jeito. Não dá, homem, não dá».

Livro: "Outonecer"

Autor: Júlio Machado Vaz

Editora: Contraponto

Preço: € 16,60

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A essa concepção de águas furtadas, deferentes mas com lotação máxima, a minha profissão veio juntar outros mecanismos apaziguadores. As recordações não fazem fila, disciplinadas, perante uma memória mecânica e isenta; robótica. Nem por sombras! O que passou não decora paredes a solo, vive rodeado de molduras afectivas, capazes de o modificar como à plasticina da nossa infância. Duas pessoas podem descrever a mesma cena de modos diversos e, no entanto, ambas falam verdade; a sua verdade. Iluminada pelos holofotes de trajectos de vida, tragam o detector de mentiras e ambas passarão, garbosas, a prova, sem qualquer treino da CIA ou do KGB.

Quando falo de afecto, refiro‐me à sua intensidade e simbolismo, certas recordações não precisarão de ferrete para nos acompanhar até ao fim, ternas ou sádicas. Milhões de momentos não despertam esse tipo de reacção, é verdade que alguns de nós são capazes de os debitar como se da lista telefónica se tratasse, mas quem pode estranhar que a outros, como o povo diz, tenham entrado por um ouvido e saído pelo outro?

E depois há a noite mal dormida, o stresse, o burnout ou a exaustão que não fala inglês, o frenesim em que vivemos, a falta de vitamina D que está na moda, o álcool que já nem consumido com moderação escapa ao sobrolho franzido de uma medicina totalitária, etc., etc. Mais o défice cognitivo, maior ou menor, próprio do avançar da idade. Para a qual estamos óptimos!, diz o nosso médico, sem se aperceber que o «óptimos» voa pela janela e a «idade» se refastela na cadeira ao lado com um sorriso trocista na face, «És meu».

Livro: "Outonecer"

Autor: Júlio Machado Vaz

Editora: Contraponto

Preço: € 16,60

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Muitos de nós nem conhecem a expressão, o défice cognitivo dá lugar a um «ando mais esquecido» de braço dado com menos horas de sono e articulações mais reivindicativas, tudo fazendo parte do processo deficitário em curso, encolhemos os ombros e escondemos o vernáculo sob o manto de (mais) uma sigla – é a PDI!

Na casa dos meus Avós paternos, o Alzheimer também pairava. Ali na Rua Alves da Veiga, perto dos Dominicanos e da Casa de Santa Zita, fonte inesgotável de serviçais que, com vontade ou sem ela, tinham abandonado o que os políticos apelidam de país profundo. Fazem‐no evitando o «desertificado» para completar a frase quando estão no poder, ou brandindo‐o, voluptuosos, se na oposição.

(Os políticos... O panorama não é animador. O Governo cozinhou uma proposta «irrecusável» para assegurar o beneplácito do PS, cujas linhas vermelhas, talvez por aproximação às cores do partido, aqui e ali se vão tornando róseas. Desbotam...

O Chega diz tudo e o seu contrário, mas é difícil não descortinar um certo receio de eleições depois dos resultados das europeias; vai daí tira da algibeira o interesse nacional. Enquanto isso, o Presidente da República, que derramou sobre os portugueses, dia após dia, innuendos, avisos, pedidos e esclarecimentos, fala uma vez mais... para anunciar que não vai falar.

Este declínio no discurso e prática políticos está longe de se acantonar em Portugal. Basta lembrar o comportamento de Macron após as eleições francesas – o país em pausa durante os Jogos Olímpicos e depois o total desrespeito pela vitória da Esquerda. Faltam ao país e à velha Europa políticos de outra dimensão, apoiássemos ou não as suas propostas. Se nos transformarmos em habitantes de um destino turístico e descendentes – longínquos! – dos Clássicos, é duvidoso que tenhamos direito a culpar Destino ou Sorte, em Democracia suportamos os líderes que merecemos.)

Ali, na casa de meus Avós, de vez em quando falava‐se de amigas e conhecidas dos Machado Vaz ou aos Machado Vaz contadas, de idade avançada e confusão mental também. Eram quase sempre mulheres, se vivem mais têm de pagar o preço e justificar um rótulo – estavam taralhoucas. Convenhamos que a palavra era bem escolhida, logo à partida tresandando a problema mental, mais acutilante seria taraloucas, mas a etimologia merece respeito. E a sonoridade, ah a sonoridade!, faz pensar em cabeças que chocalham e abanamos em busca de uma lucidez que se ausentou para parte incerta. Certo, certo é que não regressará.

E o ouvido é júri atento e certeiro, palavra prima direita o prova, quantos estrangeiros virgens do dialecto portuense vi esboçarem um movimento de recuo perante um sonoro «Badalhoco!».

Não sabem o que o termo significa, mas suspeitam‐no avesso a lençóis ou consciências lavados, esboçam um movimento de surpresa quando lhes explicamos que pode ser dito com carinho. O mirandês pode ser difícil, mas o tripeiro, por uma estranha alquimia, não descobrindo o ouro conseguiu transformar em interjeições palavras ofensivas da honra de quem as ouve e da boa educação de quem as profere. Também por isso o Porto é uma «naçom», carago!

Mas, em pano de fundo, um nome começou a aparecer no discurso das pessoas. E imagino que do Hades ou do Paraíso alguém tenha resmungado «Já não era sem tempo, avisei‐os no início do século xx». Alzheimer, se chamava o injustiçado. Descreveu a doença, mas não lhe assistiu ao retumbante sucesso, ajudado pelo aumento da longevidade – bomba‐relógio que pede meças às alterações climáticas –: quem se pode hoje gabar de não ter um caso na família? As outras demências vivem à sombra de irmã mais velha, recebem tão pouca luz que, na verdade, só existem na boca dos especialistas.

O medo é monogâmico e enfiou o anel no dedo do Alzheimer. Não há divórcio possível, pelo contrário!, o abraço é cada vez mais apertado, inexorável, a marcha do comboio pode ser lenta, mas paragens em apeadeiros de esperança tímida são curtas. Quanto à estação de chegada, as pessoas dividem‐se: umas aceitando a morte clássica, que antigamente proibia o embaciar do espelho, outras agarram‐se à lucidez e recusam‐se a cumprimentar os que amam como estranhos, murmuram «Já não serei eu, é uma questão de dignidade». E aspiram a morrer ainda inteiros.

Os sintomas são vários, mas a perda de memória ofusca os outros. Esquecimentos normais? Para muitos foi chão que deu uvas. Eu, por exemplo, bebo vinho engarrafado em casa. Com dois pais demenciados não é tanto a genética a assustar‐me, mas o que presenciei.

A insegurança traz problemas acrescidos. Não falo de inseguranças existenciais, afinal acompanharam‐me toda a vida, como a tanta gente. Nem preciso de recuar à timidez adolescente, que transformava em júri ameaçador a fila das cadeiras ocupadas pelas raparigas nos bailes de garagem. Basta‐me recordar a primeira aula teórica e a palmada nas costas do meu querido professor Amândio Tavares, «Vai ver, não custa nada». Eu acreditava que fosse grátis em termos financeiros, mas a taquicardia e a falta de ar não têm preço, quem as sentiu sabe que falo verdade. E por isso naveguei para o anfiteatro com duas cervejas ao leme e nunca me arrependi, mais valia prevenir bebendo do que remediar... bebendo.

Com frequência a insegurança caminha a par da indecisão, damos voltas e voltas à rotunda sem escolhermos qualquer saída, decidimos não decidir, é uma decisão como outra qualquer. O tempo, a sorte ou os outros se encarregarão de nos indicar o percurso, o que acarreta a vantagem de termos algo ou alguém a quem culpar quando barco e vida encalham.

Falo de outra insegurança. Menos superficial e ligada a acontecimentos exteriores; funda; rumorejante. Pronta a espreguiçar‐se em todas as direcções e com uma tonalidade já paranóide, que adivinha barreiras, inimigos e, o mais das vezes!, falhas próprias. No meu caso, rói uma das minhas paixões – a associação livre.

De acordo, a profissão permite‐me surfar a dos outros, na esperança de ir encaixando mais peças aos puzzles que me trazem. Falo da minha. À qual sempre dei rédea solta no ensino, de tal forma que um antigo aluno, hoje meu médico, dizia, bem‐humorado – «Lembro‐me de aulas em que o professor não passava do primeiro slide». Pode muito bem ter acontecido, a matéria era ponto de partida e de chegada, mas por que decreto divino ou do Conselho Científico era obrigado a seguir a linha recta; a auto‐estrada; os carris?

Quase poderia dizer que me presenteava caminhando com as palavras pelo wild side, o velho Reed nunca se queixou. Fazia‐o porque a todo o momento sabia poder retomar a narrativa, deixada há minutos largos, larga era a banda da minha memória, «Como ia dizendo...», e caminhava em terra firme.

Isso acabou, como diz o Manel, c’est fini. O medo de me perder na floresta das associações livres e não reencontrar a estrada principal, a fantasia de ter de perguntar a alunos ou simples parceiros de conversa «Mas isto vinha a propósito de...» e ser salvo pela memória dos outros, tudo me fez perder espontaneidade no discurso, organizar palavras antes de as debitar, verificar mental‐ mente nomes que citarei com receio de os ter esquecido; caminhar passo a passo, recusando a boleia do vento.

É massacrante.

Os leitores reconstroem o que lêem. E apercebem‐se de frases que encerram o núcleo duro da narrativa. Quando comecei a escrever Muros só tinha o final claro – «Talvez inevitável desistir do amor, mas seguramente obsceno». O título partiu de vida vivida, na vilazinha galega perdi uma batalha contra os meus fantasmas abandónicos e, revisitando as trincheiras, compreendi que escrevera sobre muros que separam as pessoas, aceitando trocas de olhares, abraços sedentos e até o amor, mas proibindo que se transformem num futuro comum.

Muitos leitores me falaram disso, contaram estórias de feridas por sarar – «Acho que tomámos a decisão certa, mas... E se nos enganámos?». E eu – sempre inseguro! – escrevi‐a, mas não como certidão de óbito, ofereci‐lhe um «talvez»; se no livro deixei um irmão numa espera inútil, presenteei outro com uma felicidade quase infantil. No fim, citei os Beatles no registo da esperança e Sandy Denny no da perda, qual Pessoa anémico criei um heterónimo para um petit final de duas palavras – «se calhar». Os leitores não se deixaram enganar, o livro acabara antes, aquele «obsceno» resumia tudo.

Com as crónicas acontece algo de semelhante, uma delas cala mais fundo do que as outras. Em Estes Difíceis Amores, determinado texto deixou a concorrência a perder de vista, chamei‐lhe «Um Crepúsculo no Regaço». Sem surpresa, sobretudo entre os leitores mais velhos, afinal trata‐se do relato de uma mulher que vê o seu homem afundar‐se no Alzheimer e respeita o pedido de avisar um amigo que o ajuda a partir como desejava. A fronteira escolhida? Deixar de a reconhecer.

Não tenciono dissertar sobre a eutanásia, ao longo dos anos deixei a minha posição bem clara, não quero sobreviver a mim mesmo, ponto final. Falo do texto porque nele se referem a consciência do próprio do início dos sintomas, diagnósticos alternativos, busca frenética no doutor Google. Ou seja: o acompanhar de um défice cognitivo sem regresso. A narradora tem o crepúsculo do seu homem no regaço, vê, sofre e decide como espectadora dilacerada.

(Não disserto sobre a eutanásia, mas aceito dois dedos de conversa sobre o tema a pretexto de um filme. Sinal preocupante, já nem me lembrava de ir ao cinema! Mas o Tiago Alves é um amigo de longa data, conseguiu sacudir esta modorra, «Vens comigo a Ovar?». Claro que fui, tive a grata surpresa de lá estarem o Miguel Soares, o Jorge Carvalho de Sousa e a Bé, com amigos por perto os quilómetros encolhem e os ponteiros do relógio andam mais devagar. [Foi à noite...]

O Tiago arranjou forma de me proporcionar o visionamento prévio do último filme de Almodóvar. Recebido com enorme gentileza nos cinemas do Arrábida, mergulhei na enorme sala, balbuciei um – «Sou só eu, peço desculpa pelo incómodo». Talvez enfadada, a sala remeteu‐se ao mais absoluto negrume. As luzes de presença não tinham sido projectadas para glaucoma, ficar na primeira fila arrasta sempre o fantasma de um torcicolo, preparei‐ ‐me para subir uns degraus a passo de tartaruga e mão esquerda saltando de cadeira em cadeira.

A triste consciência da minha burrice: o telemóvel abriga talentos vários, entre os quais um foco de luz. E luz foi feita! Repimpado na fila seis ou sete, recordei quem na juventude nos conduzia aos lugares, seguíamos o rasto das lanternas, «Com licença, com licença», no ecrã peles vermelhas e caras pálidas – os imigrantes da altura eram os bons da fita... – entusiasmavam a plateia.

Já lera as declarações de Almodóvar sobre o filme, a incompreensão perante o apagar da vida e a defesa do direito de evitar determinados tipos de morte... morrendo mais cedo, mantendo o controlo da situação. Pelo meio a crítica ao encarniçamento terapêutico e o sublinhar de uma velha pecha humana – só em situações‐limite nos lembramos de quanta proximidade afectiva desperdiçámos. Seria cruel atardar‐me sobre o argumento, mas dois aspectos fizeram‐me sorrir: tudo se passa no seio de uma elite intelectual e a morte propicia um happy end feito de uma pacificação de vivos e mortos. É um bom ponto de partida para a discussão da eutanásia e não só? Seguramente. Mas do fundo da minha ignorância cinematográfica, e apesar do respeito que tenho pela opinião do João Lopes, não decretaria o filme o melhor de Almodóvar; esse estatuto reservo‐o para Fala com Ela – e sim, gostos não se discutem.)