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O caso em que a dupla Os Anjos exige uma indemnização de um milhão e 118 mil euros, alegando que um vídeo humorístico divulgado pela humorista Joana Marques, que ridiculariza a sua versão do hino nacional, é responsável pela quebra de receitas na sua carreira é mote para a pergunta "quais os limites do humor?".

Nelson Nunes, autor do livro "Com o humor não se brinca", diz ao 24notícias que o caso "parece um pouco tonto", numa primeira instância. "Imagino que seja muito chato não fazer um ou outro concerto, mas não dá para fazer uma relação direta entre perder um concerto ou um promotor cancelar um concerto por causa de um vídeo humorístico".

"Primeiro, a responsabilidade não é do humorista. Quando muito é do promotor. E também não sei se os fãs, por causa de uma piada, vão deixar de ver a banda ou vão deixar de gostar da banda. Eu imagino que os fãs dos Anjos não viram o vídeo da Joana Marques e disseram 'agora odeio os Anjos', não é? Acho que as coisas não acontecem assim", nota.

Além disso, frisa, "o humorista faz uma piada e não pode prever as reações. Era muito fácil. Se assim fosse, o Chega não tinha um único deputado, porque o Ricardo Araújo Pereira passa todas as semanas a dizer mal deles. O humorista não faz a piada para ter um efeito a não ser fazer rir os outros. É só isso".

"Quando nós estamos lá no meio do furacão, se calhar não entendemos muito bem que aquilo que dissemos foi um pouco tonto ou que foi mal interpretado. Ou às vezes é mesmo o que nós achamos, só que a sociedade como um todo ou a maioria das pessoas rejeita a ideia e também está tudo bem com isso", adianta.

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"Mas aqui falamos de alguém que está a processar alguém porque disse uma coisa qualquer em que é impossível medir a escala do dano. Tiveram um efeito qualquer de cancelamento de concertos e de prejuízos financeiros, etc. Eu acho que isto não se mede assim, não é mensurável. E, portanto, parece-me um bocadinho descabido e os tempos que vivemos são um bocado estranhos", acrescenta Nelson Nunes.

Quanto ao desfecho do caso, acredita que, "em condições absolutamente normais, a juíza vai olhar para a alegação e dizer que não é possível estabelecer uma relação entre uma coisa e outra. Espero que diga 'vocês têm toda a legitimidade de se sentirem ofendidos com o vídeo, mas estabelecer um paralelo entre o prejuízo financeiro e uma piada não é uma coisa que seja possível fazer'".

De recordar que o vídeo mostrava partes da atuação da dupla constituída por Nelson e Sérgio Rosado antes de uma prova do MotoGP em Portimão, em que Os Anjos cantaram o hino nacional e o vídeo publicado pela humorista continha partes de reações do júri do programa “Ídolos”. Ou seja, reforça, "não era um conteúdo privado que foi depois difundido".

"Não era preciso fazer a piada, as pessoas têm olhinhos e têm ouvidos e cada pessoa faz o seu julgamento. Ela fez uma graçola, mas o momento por si só até tem mais piada. É mais ou menos o mesmo jogo do Extremamente Desagradável", aponta.

"Não há aqui qualquer espécie de discurso de ódio, não há nenhum apelo a que cancelem todos os concertos dos Anjos. Não é nada disso. Estes rapazes realmente cantaram de uma maneira um bocadinho esquisita. É uma observação, é uma opinião, é mostrar aquilo que aconteceu", reforça Nelson Nunes.

Limites para o humor ou uma história para a História?

Apesar da perceção geral, Nelson admite que não fica surpreendido por "ver pessoas ofendidas e que queiram cancelar outras".

"Não é a primeira vez, não há de ser a última. Mas acho que, pelo menos a um nível tão mediático, é a primeira vez que uma piada é julgada em tribunal. É um conceito surreal", atira.

"Para mim o que é expectável é que Joana de Marques seja absolvida e que o assunto seja esquecido ou que fique naquelas enciclopédias de conhecimento. Daqui a 15 anos, vamos ter uma daquelas enciclopédias tipo 'Coisas Esquisitas que Aconteceram na Justiça no Início do Século XXI' e vai lá estar este caso. Espero eu que seja isso", reforça a rir.

Ao longo dos anos, a pergunta sobre os limites do humor tem sido constante. E as respostas são poucas. "As regras não estão escritas, continuam a não estar escritas, mas fica um bocadinho mais claro sobre o que é que se pode dizer à luz da legalidade, à luz da boa educação, etc. E o que é que é saudável dizer num contexto humorístico".

"Chegou a uma altura em que já era tão estapafúrdio perguntar sobre limites a um humorista que a própria pergunta já soava a uma piada. Chegamos ao dia de hoje e, claramente, se calhar é preciso continuar a falar disto. Não pelos humoristas, como é óbvio, mas volta e meia é preciso relembrar que está absolutamente estabelecido que numa piada e numa opinião o escopo é o mesmo. Podemos fazer piadas com tudo, assim como podemos ter opiniões sobre temas complicados", recorda.

Fora de Portugal, o caso do humorista brasileiro Léo Lins, condenado a oito anos de prisão por piadas consideradas discriminatórias, mostra que nem toda a gente concorda com o ponto de vista de Nelson Nunes.

"Há dias, alguém pôs o especial dele no YouTube e eu estive a ver. E aquilo até me parece muito inócuo. Os temas, na verdade, são um bocadinho mais delicados, mas as piadas nem sequer são muito ofensivas. Se aquela juíza que julgou o Léo Lins visse coisas do Jimmy Carr, a cabeça dela explodia. Porque o homem tinha que ter, por exemplo, prisão perpétua", evidencia.

"Portanto, isto para dizer que para muitas cabeças ainda não está esclarecido o que é legal dizer, o que é educado dizer numa mesa de jantar. E que um palco de comédia ou um contexto de comédia não é a mesa do jantar lá de casa, nem a Assembleia da República, nem uma cerimónia". E dá um exemplo: "não vamos fazer uma piada de pedofilia dentro de uma igreja. Pode ser muito engraçado, mas o contexto interessa. E, em termos legais, se calhar corremos o risco de sermos chutados de lá para fora e até, quem sabe, levar um tabefe ou outro — e o tabefe é crime, já agora, mas dizer coisas não é crime, a menos que apele à violência, ao ódio, e isto está estabelecido na lei".

E, por isso, volta a referir Joana Marques: "o que ela fez não é crime, ponto final". Contudo, há outro conceito que tem de ser entendido: o de liberdade de expressão, que "está bem estabelecido na lei, mas não está estabelecido nas cabeças da sociedade civil".

"Muitas vezes, há muita gente que faz da liberdade de expressão um motivo para chorar — e para afirmarem que já não se pode dizer nada, o que não é verdade. Para já, em Portugal, não houve ninguém verdadeiramente cancelado por causa de coisas que disse. As pessoas continuam a ter o seu emprego", diz Nelson Nunes.

"Agora, de repente, uma humorista tem que ir a tribunal por causa de uma graçola que fez. O ambiente não está altamente saudável e democrático", remata.