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É a narrativa, estúpidos

«Vai para o raio que te parta!», gritaram os bárbaros. E o Ocidente foi. Hoje, falar do Ocidente como uno ou é uma memória ou um desígnio de reparação, numa espécie de empreitada salvífica, ou um equívoco de quem ainda não percebeu que o Ocidente se fracturou. Quiçá irremediavelmente.

«Duas nações; entre as quais não há interacção nem simpatia; que são tão ignorantes dos hábitos, pensamentos e sentimentos uma da outra, como se fossem moradores de zonas diferentes ou habitantes de planetas diferentes; que são formadas por uma criação diferente, alimentadas por comida diferente, ordenadas por maneiras diferentes e não são governadas pelas mesmas leis» [tradução livre]. Eis as palavras que Benjamin Disraeli usou, em 1845, para descrever a sociedade britânica no seu romance Sybil, or The Two Nations. Referia-se aos ricos e aos pobres.

Passados quase dois séculos, esta descrição pode ser utilizada para caracterizar o Ocidente. Entre os instagramers da costa Oeste dos Estados Unidos e os rednecks descritos no romance autobiográfico de J. D. Vance, agora candidato ao cargo de vice-presidente na candidatura de Donald Trump; entre os brexiteers e os bremainers, aqui há uns anos, no Reino Unido; entre os apoiantes da Rassemblement National de Le Pen e os frentistas «Republicanos» de agora, em França; os hábitos, os pensamentos e os sentimentos de cada um dos grupos são tão estranhos ao outro que parecem oriundos de planetas diferentes.

Dir-me-ão, ancorados na velha forma de fazer política, que estas diferenças são meras dissensões, próprias da democracia. Não é o caso. E não é o caso por duas razões: a primeira porque a dissensão própria da democracia, sendo permanentemente conflituante, não é radicalmente excludente, nem metafórica nem fisicamente; a segunda porque a dissensão em democracia ocorre sob princípios comumente aceites e solidamente estabelecidos de união, sejam eles de índole nacional, sejam eles de mero respeito das regras democráticas. Repito: não é este o caso. Entre símbolos nacionais destruídos, apologia de regimes auto- cráticos, adversativas face a grupos terroristas, manifestações racistas, obliteração de princípios elementares dos Direitos Humanos, tentativas de assassinato de carácter e de facto, falta cimento onde sobra ácido.

Maria Isaac junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 30 de outubro, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz "As histórias que nos matam", o seu mais recente livro, publicado pela Porto Editora.

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O debate já não é político, é tribal. Os argumentos já não são racionais, são emotivos. O que se digladia já não são propostas de governo, são narrativas.

Tenho más notícias para os «moderados»: estão a escolher as tribos erradas (sempre que optam pela extrema-esquerda para frentismos «republicanos»), a vossa emoção é revanchista e as narrativas ofereci- das são paupérrimas e nada inspiradoras.

Vejamos alguns casos.

Durante o Brexit, enquanto os brexiteers usavam o lema «Take Back Control» (Recuperar o controlo), os bremainers, como nos explicou Boris Johnson, numa excelente peça assinada por Tom McTague, na The Atlantic ( Julho/Agosto, 2021), «no lugar de terem tido a coragem de contar a história real no coração da sua visão, uma história da beleza da União Europeia e da sua identidade colectiva, optaram por oferecer alegações de desastre iminente caso a Grã-Bretanha partisse, a maioria das quais difíceis, à época, de descortinar. [Ou, mais provável, nas quais os eleitores não queriam acreditar.] A história em que os eleitores acreditavam era fundamentalmente diferente – nas palavras de Johnson, “que este é um país grande, notável e interessante por si só”».

Nas últimas eleições francesas, enquanto a Rassemblement National dizia que consigo La France revient, l’Europe revit! (A França está de volta, a Europa revive!), os «moderados» que escolheram a extrema-esquerda da França Insubmissa de Mélenchon para uma frente «Republicana» (o que não deixa de ter a sua graça, já que entre tiranias e outras barbaridades os franceses já vão na 5.ª República) limitaram-se a esgrimir medos e fantasmas contra a extrema-direita.

Nos Estados Unidos, enquanto Trump clama Make America Great Again (Tornar a América novamente grande), os seus opositores democratas fazem ataques morais ao candidato Republicano e, por arrasto, não tão explicitamente quanto Hillary, ao basket of deplorables dos seus apoiantes. Agora, numa revelação de carácter, tudo fizeram para escorraçar o único herói da sua candidatura, o próprio Joe Biden, um homem decente, um leão cansado, entregue a um serviço há muito para lá das suas capacidades. O homem a quem exigiram mais do que evidentemente ele podia dar, e que agora quiseram substituir com pouca honra e nenhuma glória. Do outro lado pode estar uma hiena, mas ninguém prefere ratos a hienas.

Volto a Boris Johnson. «Boris afirma que as pessoas precisam de se sentir parte de algo maior do que elas mesmas. Não que se considere um nacionalista, mas diz-se ciente de que os indivíduos precisam de um forte sentimento de pertença – e não deveriam ser tratados com condescendência por se preocuparem com a erosão das suas tradições e conexões.»

Isso percebeu, ainda no século XIX, o romancista Benjamin (Disraeli), que inspirou o estadista (Benjamin) Disraeli. Rompendo uma tradição de protecção dos terratenentes no divisivo tema das Corn Laws, alargando o sufrágio num acto contra-intuitivo para os privilegiados, criando uma cisão no seio do seu partido que resultou na saída de Peel (ex-primeiro-ministro) e Gladstone, Disraeli refundou o Partido Conservador britânico, tornando-o naquilo que foi durante mais de um século e meio, resistindo ao fim do Império, para lá da revolução industrial, a duas grandes guerras mundiais – uma das quais vencedor –, e à guerra fria: uma avassaladora máquina de poder, congregadora de tendências muitas vezes contraditórias, mas alicerçada numa narrativa maior e galvanizadora: o one nation party, um partido de Uma Só Nação. Seguramente, com medidas de governo e com coragem, mas também com uma narrativa insuperável.

«As pessoas vivem pela narrativa», disse Boris, «os seres humanos são criaturas de imaginação».

Os «moderados» podem continuar a demonizar os emergentes, mas enquanto só tiverem lamentos e medos para exibir, enquanto não forem capazes de conhecer os habitantes do «outro país», não vão conseguir convencer ninguém da sua razão.

Até lá, hasta la vista, baby!

22 de Julho de 2024

Já não havia tantos «fachos» desde a Marcha sobre Roma

Quando, em 1922, os fascistas marcharam sobre Roma, eram milhares, eram mesmo fascistas e o assunto era sério. Depois disso, a história é conhecida: o fascismo, não sem uma tragédia épica pelo caminho, acabou vencido. E a maior parte de nós, no Ocidente, com a vitória sobre o comunismo também, acreditou que tínhamos chegado ao fim da História.

Hoje, todavia, a fazer fé na berraria que por aí vai, os fachos estão de volta e em força: tudo justifica o epíteto de extremista e de facho. Em cada esquina onde não haja uma filia da moda, expressa e normalizada, há sempre quem descubra uma fobia reaça, sombria e marginal.

Exemplos?

Livro: "Rendição ou A Ascensão dos Idiotas"

Autor: Pedro Gomes Sanches

Editora: Guerra e Paz

Data de lançamento: 23 de setembro de 2025

Preço: € 16,50

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Se és católico e não gostas da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, és facho. Se te atreves a dizer que és a favor da família tradicional, és facho. Se te choca que as instituições europeias queiram, em Dezembro, substituir o «Natal» por «festividades» para não melindrar ateus e muçulmanos, és facho. Se não crês que o aborto seja um direito constitucional, mesmo que o admitas numa conjugação e num conflito de dois direitos (à vida e ao uso do corpo), és facho.

Se achas que a disforia de género é um assunto (também) do foro psiquiátrico e não uma escolha individual, és facho. Se achas que uma pessoa biológica e/ou geneticamente homem não deve concorrer em provas femininas onde essa circunstância é relevante, és facho. Se te recusas a dizer «pessoa que menstrua» para designar mulher, és facho.

Se ousas expressar um sentimento de insegurança quando à tua volta, na tua rua, no teu bairro, na tua cidade, no teu país, vês outras expressões culturais estranhas à tua matriz cultural cada vez mais presentes, cada vez mais expressivas, és facho. Se queres controlo de fronteiras no teu país, seja por razões culturais, seja por razões económicas, seja por razões de segurança, seja porque sim, és facho.

Se queres pagar menos impostos sobre o resultado do teu trabalho, és facho. Se queres deixar uma herança aos teus filhos sem que o Estado se sente à mesa como se fosse ele próprio teu filho, és facho.

Se gostas mais da bandeira do teu país do que da bandeirola arco-íris LGBTQIA+nãoseioquê, e começas a ficar farto de a ver pendurada em todas as fachadas e em todos os lugares por todos os motivos, és facho. Se gostas das tradições da tua terra, és facho.

Se não queres uma Palestina «do rio até ao mar», e se consideras que Israel é o pináculo da civilização no Médio Oriente actual, és facho. Se abominas o comunismo em qualquer parte do mundo, és facho. Se desejas para a Venezuela, para Cuba, para a China, para a Coreia do Norte e para todos os países que vivem sob a pata de ditaduras facínoras democracia e liberdade, e se essas ditaduras forem de esquerda, és facho. Se te enojam os Ayatollah e a polícia de costumes do regime iraniano, és facho. Se deploras os Taliban e a forma como tratam as mulheres, se és incapaz de um «segundo olhar» para com esses crápulas, és facho. Se te revolvem as tripas sempre que vês as Nações Unidas tratarem esta gente com adversativas mansas, és facho.

Se és irredutivelmente a favor da liberdade de expressão, e te apetece mandar bugiar todos os que te vêm exortar para teres «tento na língua», és facho.

É claro que nada disto, expresso assim, tem a mais remota ligação com o fascismo; é claro que se trata apenas de opiniões, percepções legítimas que, per se, não são sequer excludentes; mas o que o statu quo tem vindo a fazer, lançando anátema e tentando calar, é musculá-las pela necessidade de se fazerem ouvir e respeitar. Claro também é que, neste jogo de intolerância e reacção diariamente alimentado, se cada uma das pessoas apanhadas nesta voragem da «fascização» em marcha for facho, como os falsos profetas anunciam, uma certeza podemos ter: nunca, desde a Marcha sobre Roma, houve tantos fachos por aí como agora.

Os problemas daqui decorrentes são vários, mas destacaria três: a consequência da etiqueta, a história do lobo e a tragédia do fim.

A consequência da etiqueta – os sociólogos explicam isto com a Labeling Theory – é que tantas vezes chamas facho a quem não é, ainda por cima por motivos que essa pessoa considera justos, que há um dia em que o que era suposto ser ofensivo e desmobilizador passa a ser elogioso e incentivador. A história do lobo é que, como o Pedro descobriu da pior maneira, quando o fascista vier, ninguém dará por ele nem tampouco acreditará que veio. A tragédia do fim é que, ao cabo de mais uns anos nesta pocilga em que o espaço público se tem vindo a tornar, o Triunfo será dos Porcos; e a democracia acabará por soçobrar.

Nas caixas de comentários e algures nas redes sociais, quod erat demonstrandum, encarregar-se-ão de me mandar calar. E eis-nos chegados ao corolário do tempo presente: «A possibilidade de lutar com palavras, em vez de lutar com armas, constitui o fundamento da nossa civilização.» E o contrário desta afirmação de Popper é, como diria o senhor De Lapalisse, precisamente o seu contrário.

12 de Agosto de 2024

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