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Mais do que um teto, a casa pode ser o primeiro passo para a liberdade. É essa a premissa do projeto “Housing as a Tool for Freedom: A Future Away from Incarceration”, que vai desenvolver e propor soluções habitacionais para pessoas que saem da prisão — desde residências de transição a modelos de arrendamento acessível — com o objetivo de reduzir as taxas de reincidência criminal.

Durante os próximos cinco anos, uma equipa de investigadores do Iscte vai analisar os percursos habitacionais de pessoas que passaram pelo sistema prisional em Portugal, na Bélgica e na Noruega, de forma a possibilitar comparações críticas e identificar soluções que possam ser adaptadas e aplicadas entre diferentes realidades.

O projeto, coordenado pela investigadora e arquiteta Joana Pestana Lages, recebeu, no passado mês de setembro, 1,5 milhões de euros do European Research Council, a principal organização da União Europeia de financiamento para a investigação de ponta.

Joana Pestana Lages, que é também vice-diretora do Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território - DINÂMIA'CET do Iscte, explicou ao 24notícias como surgiu a ideia desta investigação.

“Este projeto segue uma linha de trabalho que tenho investigado há mais de uma década, que se relaciona com a questão da precariedade habitacional e com o acesso à habitação por parte de grupos vulneráveis”, disse.

“Comecei a interessar-me pelo impacto da habitação neste grupo de pessoas que estiverem presas e saíram para a liberdade. Começou com esta constatação de uma vulnerabilidade que existe e evoluiu para pensar como é que o acesso à habitação pode facilitar não só uma reinserção completa e plena mas também a questão da reincidência. Como é óbvio, sem uma habitação estável os indivíduos são mais propensos a reincidir”.

A iniciativa parte de um dado incontornável — mais de 11,5 milhões de pessoas estão atualmente presas em todo o mundo, um número que tem vindo a crescer desde o início do século. Em Portugal, as penas de prisão estão entre as mais longas da Europa, em termos de duração média, e a reincidência atinge valores estimados entre 50% e 75%.

Para Joana Pestana Lages, o que apelida de “lógica punitiva” não acontece apenas dentro da prisão, e muitas vezes, mantém-se quando os reclusos são libertados. Por essa razão, um dos grandes objetivos do projeto é ultrapassar e desmantelar essa mesma lógica.

“Num mundo e num Portugal muito polarizado hoje em dia, e com o discurso populista que tem vindo a ganhar força, a primeira coisa que nós ouvimos dos populistas é que se aumentem as penas de prisão e que mais pessoas sejam presas. E nós precisamos de perceber que estas lógicas punitivas por si só não conduzem muitas vezes aos efeitos que nós queremos”, defende.

“O projeto quer ir além desta lógica punitiva, deste discurso populista que vê a prisão como uma resposta para problemas que são problemas sociais”.

Em resposta, o “Housing Freedom” propõe uma inversão de paradigma — pensar na justiça a partir da habitação, não como um privilégio, mas como uma condição material e simbólica da liberdade. O projeto vai mapear experiências de reentrada, criar um Índice Europeu de Acessibilidade à Habitação para pessoas que estiveram privadas de liberdade e reunir, numa comunidade de prática transnacional, ex-reclusos, académicos, arquitetos, ONGs e políticos.

A coordenadora do projeto aponta o momento de libertação da prisão, mas também a adaptação ao quotidiano a longo termo como dois fatores cruciais a considerar no que toca a soluções.

“O projeto vai trabalhar em várias dimensões, como as condições de saída de pessoas que têm muita dificuldade em encontrar uma habitação porque também não têm uma estrutura social cá fora que as acolha”, afirma.

O “Housing Freedom” identifica o estigma social, as restrições legais e a inacessibilidade habitacional como alguns dos principais obstáculos que impedem a reintegração das pessoas após o encarceramento. Mesmo reconhecendo que uma habitação segura e estável é a condição mais imediata e essencial para recomeçar a vida fora da prisão, muitos ex-reclusos enfrentam exclusão sistemática dos mercados de arrendamento e das políticas públicas de habitação.

Segundo Joana Pestana Lages, criar condições para que esse estigma não inviabilize a reinserção social é essencial.

“Não dar as condições para que as pessoas tenham uma reinserção, vedando-lhes acesso ao emprego, dificultando-lhes o acesso à habitação [...] não me parece que esse seja um processo certo para lidar com uma pessoa que foi condenada, mas que nós queremos que viva de forma responsável, conforme o direito e as leis da sociedade.”

Para a investigadora, compreender o impacto do estigma e das barreiras ao acesso à habitação é crucial não apenas para apoiar a reinserção, mas também para informar políticas públicas mais eficazes no que toca à reincidência.

“Abordar estas questões das elevadas taxas de reincidência que nós temos contribui para desenvolver programas, mas também políticas públicas que são mais atentas a esta realidade e que são também informadas por evidências”, explica.

Segundo a coordenadora, ao envolver diretamente as pessoas afetadas e profissionais que trabalham com elas, a investigação cria uma base empírica sólida, garantindo que os resultados refletem experiências reais e servem para moldar políticas mais robustas e com maior probabilidade de sucesso.

Outro desafio crucial na reintegração de ex-reclusos é a ausência de recursos para apoio psicológico. Muitos indivíduos enfrentam problemas de saúde mental agravados pela experiência prisional, e a falta de acompanhamento adequado aumenta riscos como a reincidência ou até mesmo o suicídio.

“As taxas de suicídio nas prisões portuguesas são 10 vezes superiores às taxas da população geral, e quer durante a prisão, quer na reintegração, é necessário ter em conta a ausência estrutural de apoio ligado às questões de saúde mental”, explica.

Nesse sentido, a habitação surge não apenas como uma necessidade material, mas como uma infraestrutura que pode ter um efeito “quase terapêutico”, proporcionando às pessoas um espaço seguro e digno para recomeçar a vida e apoiar a sua reintegração.

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