Acompanhe toda a atualidade informativa em 24noticias.sapo.pt

É o acontecimento editorial deste outono. O livro de memórias de Juan Carlos I é tão ansiado como temido. A antecipar o lançamento, marcado para 5 de novembro, o rei emérito de Espanha tem-se desdobrado em entrevistas: "Vão atacar-me, preciso de comprar um escudo", diz ao Le Figaro. As primeiras conversas são com a imprensa francesa, mas Juan Carlos de Borbón vem a Lisboa e depois a Vigo, antes de regressar a Sanxenxo para participar numa regata.

Tomou as "principais decisões sozinho", na "penumbra" do seu gabinete, e como monarca nunca foi verdadeiramente "senhor do seu destino". Reconhece inúmeras "fraquezas", "más companhias" e "erros", decisões tomadas por "amor ou amizade". São 87 anos de vida, quase 40 de trono, de 1975 a 2014, agora condensados em cerca de 500 páginas, o resultado de longas conversas em Abu Dhabi, onde está exilado, com a autora Laurence Debray.

Talvez espere exorcizar alguns demónios, mas apenas a algumas semana do 50.º aniversário da monarquia espanhola, o rei Felipe VI não terá a vida facilitada: "Agora que o meu filho me virou as costas por dever, agora que os meus supostos amigos desapareceram, percebo que nunca fui livre", pode ler-se num excerto publicado pela Point de Vue. "Dei liberdade ao povo espanhol ao instaurar a democracia, mas nunca pude desfrutar dessa liberdade para mim próprio".

Da relação pai-filho com Franco ao presente árabe de 100 milhões e outras ofertas "que podem parecer desadequadas para alguns", passando pela "desavença pessoal com Letizia ou a mágoa por a rainha Sofia nunca o ter sido visitado em Abu Dhabi, mas também a queda aparatosa no Botswana, em 2012, ou descoberta de uma conta bancária na suíça e investigações a rendimentos não declarados, o rei emérito afirma ao Le Monde que tem consciência de que estas confissões vão "reacender críticas", que o Palácio da Zarzuela tenta abafar desde que abdicou da coroa.

A relação com Franco, o dinheiro e as amantes

Juan Carlos I elogia o ditador Francisco Franco, a quem deve a subida ao trono. "Se pude tornar-me rei, foi graças a ele". E foi já no leito da morte que o ditador lhe pediu, como seu sucessor, que mantivesse a unidade de Espanha, revela. "Eu tinha carta branca para empreender reformas, desde que a unidade de Espanha não fosse comprometida. Senti que ele me dava liberdade para agir", revela.

E vai mais longe: "Respeitava-o [a Franco] enormemente, apreciava a sua inteligência e a sua perspicácia política. (...) Nunca deixei que ninguém o criticasse à minha frente". À pergunta do jornalista da Point de Vue sobre se tinha com Franco uma relação filial, Juan Carlos responde: "Tínhamos 46 anos de diferença. Ele não tinha filhos rapazes. Talvez projetasse em mim um sentimento paternal. Não escondia o afeto que sentia por mim, até uma certa ternura. Reservava tempo para me ver com frequência".

O sentimento de abandono e solidão também é descrito pelo embaixador José Bouza Serrano, autor da biografia "O Rei Sem Abrigo", que conheceu Juan Carlos nos anos 80, quando era ainda um jovem diplomata e foi colocado na Embaixada de Portugal em Madrid: "Ele tem dinheiro, mas para desanuviar a coroa teve de sair do seu país já velho, sacrificar-se depois de tudo o que fez durante a vida. Porque toda a vida se sacrificou pelo conde de Barcelona [pai], pela coroa, foi um miúdo sozinho, sofria imenso por estar desterrado da família, achava que não gostavam dele".

O dinheiro é outro dos aspetos controversos que Juan Carlos aborda nas suas memórias. Recebeu 65 milhões de euros do rei "irmão" Abdullah da Arábia Saudita, que morreu em 2015. "Um ato de generosidade de uma monarquia para outra", justifica. Ao Le Monde, confessa que “100 milhões de dólares é uma quantia considerável", mas "não soube recusar" o presente. Um "erro grave", admite agora.

Uma investigação revelou que o gestor da conta do rei emérito no banco privado suíço Mirabaud, Arturo Fasana, depositou um total de 100 milhões de dólares (64,8 milhões de euros à taxa de câmbio da altura), a 8 de agosto de 2008, provenientes do Ministério das Finanças da Arábia Saudita. Quatro anos depois, o dinheiro foi transferido por ordem de Juan Carlos I para uma conta em Nassau, nas Bahamas, em nome de uma empresa de fachada de Corinna Larsen, sua amante.

Quando o escândalo rebentou, no início 2020, Felipe VI anunciou que renunciaria à herança do pai e revelou que, um ano antes, Corinna Larsen enviara uma carta ao Palácio da Zarzuela a informar que o nome do rei emérito constava ao lado dos nomes das suas irmãs, as infantas Elena e Cristina, como beneficiárias da fundação. A Casa Real decidiu informar o governo e recorrer a um notário para rejeitar qualquer montante proveniente destas contas, recorda o El País.

Terá sido na década de 1990 que os escândalos do monarca começaram a ganhar forma, enredado por um grupo de empresários e banqueiros que acabaram na prisão. Juan Carlos admite que foi "cego a um ambiente malicioso" e fraco por "confiar em empresários que me foram apresentados", alguns "sem escrúpulos", e ceder à pressão.

Corina Larsen foi apenas uma das amantes do rei. A empresária alemã de origem dinamarquesa, companheira de Juan Carlos durante um longo período, ficou conhecida depois do aparatoso acidente do monarca durante uma caçada a elefantes no Botswana — que o levou uma cirurgia de urgência em Espanha — enquanto o país enfrentava a crise financeira de 2008. "Uma viagem longa e cara que pode parecer completamente desadequada dada a situação do país", afirma no livro. Um "erro" do se "arrepende profundamente", de acordo com o Le Monde.

"Pode parecer trivial, mas no meu caso teve um efeito devastador no meu reinado e na minha vida familiar. Manchou a minha reputação perante o povo espanhol", afirma no livro. José Bouza Serrano também não foge ao tema: "Os Borbón são assim, têm a cabeça da cintura para baixo. Todos eles, incluindo Afonso XIII [avô de Juan Carlos]".

Juan Carlos I abdica do trono a favor de Felipe VI em 2014 — e contra todos os conselhos de Isabel II do Reino Unido. Retira-se da vida pública na primavera de 2019. Um ano depois, além de renunciar à herança para "preservar o carácter exemplar da Coroa", o filho retira ao pai a pensão anual a que este tinha direito como antigo chefe de Estado (cerca 160 mil euros). "Sou o único espanhol que não recebe uma pensão depois de quase quarenta anos de serviço", lamenta o rei emérito.

O exílio e a nora, Letizia

"O único sítio que Juan Carlos tem seguro é o pudridero [onde os restos mortais da família real permaneceram cerca de 25 anos], no Escorial. Não tem onde viver. Não tem uma casa, foi expulso do Palácio da Zarzuela por causa do primeiro-ministro, que insistiu com Filipe VI para tirar de lá o pai", explica o embaixador Bouza Serrano.

Foi no Verão de 2020 que Juan Carlos deu uma "bofetada de luva branca" à família e foi para Abu Dhabi, onde vive desde então, na ilha de Nurai, sob a proteção do presidente dos Emirados Árabes Unidos, Mohammed bin Zayed Al Nahyan.

"É extraordinário, porque foi para um país que não tem nada de democrático, mas onde ele sabe que é apreciado e tratado 'à corpo de rey'", afirma o embaixador. "Ele tem dinheiro, mas para desanuviar a coroa teve de sair do seu país já velho, numa altura em que devia estar a descansar. É muito deprimente alguém que nasce no exílio e morre no exílio".

A ideia, conta o rei emérito, era ficar "ausente apenas por algumas semanas, para que os meios de comunicação social se esquecessem de mim e permitissem que os sistemas judiciais espanhol e suíço conduzissem as suas investigações com tranquilidade. Nunca imaginei que, cinco anos depois — dois deles sem ter voltado a ver o meu país — ainda estaria em Abu Dhabi".

Porquê tão longe? "Para ajudar o meu filho, procurei um lugar onde os jornalistas do meu país não me pudessem encontrar facilmente", a morada é mantida em segredo. "Da última vez que veio um jornalista espanhol, as autoridades locais prenderam-no! Tive de intervir para o tirar de lá", conta.

"Quando o meu filho soube da minha partida repentina, ligou-me. Eu já estava no avião", relata. "Para onde vai, chefe? Para Londres?". "Não, para Abu Dhabi". "Cuide-se". Juan Carlos diz que se sente abandonado, magoado, mas resignado em Abu Dhabi. "Não consigo conter a emoção ao pensar em alguns membros da minha família para quem já não significo nada, sobretudo em Espanha, de que sinto tanta falta. Há dias de abatimento, de vazio. Vivo sem perspectivas, sem qualquer certeza de poder regressar ao meu país”, cita a Point de Vue.

A maior tristeza prende-se com a sua mulher, a rainha Sofia, "Sofi", que até hoje nunca o visitou em Abu Dhabi, como fizeram as suas filhas, Elena e Cristina, o que "lamenta profundamente". Quanto à nora, agora rainha Letizia, admite uma "desavença pessoal" e  afirma que a sua chegada "não favoreceu a coesão das relações familiares".

Em cinco anos, Juan Carlos mal viu a sua mulher ou o seu filho, e muito pouco dos seus netos, com excepção de um deles, que agora vive também em Abu Dhabi. A Casa Real mantém-no sob controlo: o rei emérito diz o que pensa com muita liberdade. É protagonista de vários escândalos, aquele por quem os paparazzi lutam, aquele que o governo de Pedro Sánchez usa para desacreditar uma monarquia que sonha abolir, escreve o Le Monde.

Segundo o Le Figaro, Juan Carlos I hesitou escrever o livro. “Mas aos poucos fui percebendo que os filhos e netos dos meus amigos não faziam ideia de quem era Franco nem da transição democrática que se seguiu. E os anos setenta não estão assim tão longe! Achei necessário dar um relato em primeira mão do que vivi durante 39 anos ao serviço do meu país”, explica na entrevista ao jornal francês.

___

A sua newsletter de sempre, agora ainda mais útil

Com o lançamento da nova marca de informação 24notícias, estamos a mudar a plataforma de newsletters, aproveitando para reforçar a informação que os leitores mais valorizam: a que lhes é útil, ajuda a tomar decisões e a entender o mundo.

Assine a nova newsletter do 24notícias aqui.