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A desinformação na área da saúde circula cada vez mais pelas redes sociais, influenciando decisões sobre vacinas, tratamentos médicos e hábitos de vida. À conversa com o 24notícias,  o médico Gustavo Carona alerta para o facto de a pseudociência poder ter consequências graves, incluindo mortes evitáveis.

O termo "pseudociência" é utilizado para definir qualquer tipo de teoria com aparência científica, mas sem métodos rigorosos de pesquisa ou evidências factuais.

A propagação de falsas informações ligadas à saúde ganhou destaque durante a pandemia da Covid-19, particularmente nas redes sociais. Figuras mediáticas, como influencers ou políticos, estão muitas vezes na origem de declarações polémicas, que acabam por se tornar uma verdade absoluta para alguns.

"Nós temos que acreditar nas instituições ligadas à ciência. No caso da Medicina, é tão vital acreditar na Direção-Geral de Saúde e no Infarmed como na idoneidade dos tribunais", diz Gustavo Carona.

Não, não nascemos alcalinos e morremos ácidos

Num vídeo partilhado há alguns meses, o influencer Gustavo Santos afirmou que a quimioterapia é um tratamento “absolutamente ácido” e ineficaz. Segundo o próprio “se diante de um tratamento de quimioterapia a pessoa venceu o cancro, das duas uma: aliado a esse tratamento adoptou também novos hábitos (...) e somou terapêuticas diferentes, naturais, ou essa pessoa está diante de um milagre e foi tocada por Deus.”

No mesmo vídeo, Gustavo Santos afirma que "nascemos alcalinos e morremos ácidos", e que nenhuma doença sobrevive num ambiente alcalino, mas todas surgem em ambientes ácidos.

Questionado pelo 24notícias, o médico Gustavo Carona confessa que ao ver o vídeo, "a primeira reação foi ter vontade de rir, porque aquilo é uma absoluta estupidez".

"É um dos infinitos temas em que a desinformação na ciência engana as pessoas".

O médico explica que o corpo humano tem mecanismos naturais de autorregulação, sobretudo através dos rins, que mantêm o equilíbrio entre acidez e alcalinidade no sangue — um fator essencial para o bom funcionamento das reações químicas do organismo. Por isso, nenhuma alimentação ou produto externo consegue alterar de forma significativa o pH do corpo.

“O organismo ajusta-se sozinho e mantém o pH dentro de uma margem muito estreita, porque pequenas variações podem ser extremamente perigosas para a saúde”, sublinha, lembrando que apenas em casos de doença grave esses mecanismos deixam de funcionar corretamente.

O que diz a lei?

Quando informações falsas ganham força, deixam de ser apenas uma curiosidade pseudocientífica e tornam-se um problema de saúde pública. Para o médico, essa realidade exige responsabilização e, até enquadramento legal.

"Eu acho que desacreditar a ciência e desinformar em áreas tão importantes como a ciência, e a medicina em particular, deveria ter alguma espécie de moldura penal. Vemos pessoas a morrer porque não se vacinam, não fazem quimioterapia e ouvem estes desinformadores principais".

A Lei n.º 27/2021, de 17 de maio, inclui no seu artigo 6.º o “Direito à proteção contra a desinformação”.

"Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos", lê-se.

No entanto, não há, até ao momento, penas específicas, multas ou coimas publicamente definidas exclusivamente para quem viole o artigo 6.º no contexto da desinformação digital. A norma remete para o “regime sancionatório” sem detalhar as sanções concretas.

A regulação profissional

Enquanto a legislação define limites gerais contra a desinformação, cabe às ordens profissionais – como a Ordem dos Médicos ou outras entidades de regulação de profissões de saúde – atuar diretamente junto dos seus membros. É através destas estruturas que se podem aplicar códigos de conduta, responsabilizar profissionais e garantir que informações falsas ou perigosas não sejam difundidas no exercício da profissão.

"Parece-me que não tem sido feito praticamente nada a não ser em casos muito gritantes. Na pandemia temos infinitos exemplos", diz Gustavo Carona.

Ainda assim, as ordens profissionais só podem agir perante os seus grupos. "Quem é que pode agir perante um cidadão qualquer, como por exemplo o Gustavo Santos, que diz estas barbaridades?", questiona o médico.

"Não haver limites, parece-me muito prejudicial para a sociedade".

Como não cair em discursos pseudocientíficos?

Perceber como lidar com a desinformação é essencial. Frente a conteúdos que confundem factos científicos com opiniões pessoais, há estratégias práticas que podem ajudar o público a distinguir informação credível de afirmações enganosas.

"Aquilo que as pessoas precisam de fazer é não complicar. Acreditar à partida no médico que está à sua frente, na Sociedade Portuguesa de Infectiologia para o caso da pandemia, na Sociedade Portuguesa da Pediatria para o caso das vacinas. Eles têm sempre documentos que ajudam as pessoas a esclarecer as dúvidas mais básicas", diz o médico.

"Quando desacreditamos as instituições, nós estamos a destruir a democracia."

A "literacia científica" pode ser a solução?

Para que a população consiga tomar decisões informadas em saúde e ciência, pode ser fundamental apostar na literacia científica. Compreender como distinguir informação fiável de conteúdo enganoso, identificar as fontes credíveis e perceber como funcionam os estudos científicos ajuda a evitar equívocos e a interpretar corretamente dados complexos.

"Temos que explicar e validar quais são os organismos que veiculam a boa informação e explicar às pessoas que as redes sociais não são um bom método para adquirir a informação científica. Aquela história de 'eu tenho uma amiga, tenho uma vizinha', é péssima. É o oposto do pensamento científico porque um ou dois casos não fazem ciência. Só se faz ciência quando temos grupos devidamente estudados, globalizados, e precisamos às vezes de casuísticas muito grandes", explica.

Um dos exemplos mais recentes é a vacina contra a Covid-19.

"Ao contrário do que as pessoas pensam em relação à vacina que saiu em tempo recorde, ela foi estudada em centenas de milhares de pessoas, até chegar a nós em finais de dezembro. Foi produzida muito rapidamente, mas os estudos demoraram exatamente o mesmo tempo e tiveram exatamente a mesma exigência do que todos os outros estudos e todos os outros medicamentos".

Um único caso nunca é suficiente para fundamentar conclusões científicas. A ciência baseia-se na análise de múltiplos casos, muitas vezes reunidos em meta-análises, que agregam diversos estudos conduzidos por instituições credíveis. Esse processo fortalece a validade das afirmações na medicina e na ciência.

"É preciso perceber que as redes sociais estão cheias de lixo".

Para o médico, não é apenas a literacia científica que faz falta.

"Temos que ter literacia científica, económica, literária... Uma área que me é muito querida é a literacia humanitária, saber como ajudar, interpretar os direitos humanos, é algo que eu acho que a população portuguesa também carece bastante", afirma.

No que toca à saúde, deixa um apelo: "Não olhem para o que eu digo ou escrevo, olhem para a informação que as instituições e as sociedades médicas dizem".

As teorias anti-ciência

Para o médico, o grande problema está nas pessoas serem muito mais atraídas pela mentira do que pela verdade. Informações que aparentam ser "secretas" e que causam discórdia são tentadoras, especialmente para quem não tem a obrigação de ter conhecimentos científicos.

"O paracetamol é um medicamento com muitos anos no mercado, e nas doses recomendadas é seguríssimo, inclusive para grávidas. Mas se eu disser na internet que causa autismo é uma novidade. Dizer o normal não dá buzz nenhum", afirma. Lembrando que recentemente, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o ministro da Saúde, Robert F. Kennedy Jr., afirmaram que o uso de paracetamol durante a gravidez pode causar autismo.

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Gustavo Carona confessa acreditar que existe uma ligação entre a extrema-direita e a desconfiança na ciência.

"Eu detesto dizer isto porque eu enquanto médico sou apartidário, e enquanto cidadão também não tenho uma cor política bem definida. Mas, há uma certa consistência na desacreditação da ciência vinda da direita mais radical. Partidos como o de Trump, Bolsonaro, o Chega em Portugal, e até mesmo a própria Iniciativa Liberal, são partidos cujos membros e cujos seus apoiantes são bastante inimigos da ciência".

Em setembro, Donald Trump voltou a negar as alterações climáticas perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, durante o seu discurso. O médico, que caracteriza a ação como "um crime para humanidade", diz quem apoia este tipo de discurso está também a ser cúmplice.

"Quem abraça a desinformação sobre a ciência são os partidos da extrema-direita. Os negacionistas estão quase todos no Chega. E quando digo isto, não estou a falar de pessoas que discordam da gestão da pandemia, são pessoas que discordam de factos científicos absolutamente comprovados".

Gustavo Carona diz ainda que depois da pandemia, algumas dessas pessoas criaram o ADN, fundado em 2021.

"É liderado pelo Bruno Fialho, a Joana Amaral Dias é candidata à presidência da República, e o seu mandatário é o Dr. Manuel Pinto Coelho. Portanto, não há grande dúvida sobre onde é que eles se situam politicamente".

Manuel Pinto Coelho, médico e autor português, disse recentemente que gostava de um dia poder ser considerado o Robert F. Kennedy Jr. português. Para Gustavo Carona, a afirmação é questionável.

"O que quer isto dizer? Um homem que diz que todas as vacinas não funcionam? Já vemos nos Estados Unidos que há crianças a morrer por falta de vacinação, por exemplo, contra o sarampo".

Este ano, os Estados Unidos atingiram o recorde de casos de sarampo neste século. A esmagadora maioria eram crianças, e foram registadas três mortes. Segundo os dados publicados pelo Centros de Controlo e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, 92% dos casos identificados não eram vacinados ou essa informação não estava presente.

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Uma das principais causas para a queda na vacinação continua a ser a desinformação nas redes sociais. O fenómeno da pseudociência não fica apenas pela vacinação e, abrange outras áreas da saúde.

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